SANTO DAIME

Por Guga Stroeter

Esse é um dos artigos que Guga Stroeter escreveu para o site jornalístico no.com.

Mil desculpas, um milhão de desculpas; o azar é só meu. Minha intenção não é ferir ninguém. O problema é que quanto mais eu tento entender o significado da palavra religião, mais a identifico com magia. Os compêndios de teologia são essencialmente sinônimos de libretos de mandingas. Admito a magia na cultura, mas não consigo, por mais que eu tente, diferenciar um virtuoso padre de um pastor canalha da Igreja Universal. Do meu atormentado ponto de vista, a crença na superioridade da raça ariana e a idéia de que no meu vasinho de violetas mora um simpático gnomo, são igualmente subversivas. Qual é a diferença estrutural entre Khomeini e Dalai Lama? Ambos são escolhidos de Deus para governar seus povos, o que é perigoso e anacrônico. Dalai Lama é contra os chineses comunistas, então toda indústria cinematográfica americana o transforma num santo. Num santo que ele não é, pois se estivesse realmente preocupado com o oprimido, porque ia se dedicar a bajular o ACM, um notório representante das forças conservadoras? E Khomeini, por outro lado, morava numa paisagem árida e com muito petróleo no subsolo. Ele queria um preço melhor para vender seu patrimônio, que por acaso é o combustível para os automóveis do primeiro mundo. Foi demonizado pelos americanos, e todos sabemos o bafafá que essa história rendeu.

Os místicos vivem de explorar a fragilidade alheia e coletiva, e quanto mais imperar ignorância mais poder terão os novos "hitleres", "charles mansons" e levitantes "guru mayas". O mundo foi sempre assim, repleto de deuses astecas que exigiam o sangue de trinta mil virgens para fazer chover no altiplano; que deram lugares ao deus católico que organizou e abençoou as fazendas de monocultura escravagista do novo mundo. E com a mesma intensidade que rejeito a ignorância fundamental dos sacerdotes, admiro a engenhosidade maquiavélica de seus métodos: pois, durante milênios, a história ridícula de um sujeito chamado Jonas que morou dentro do estômago de uma baleia foi repassada como verídica para sucessivas gerações. Com um detalhe: quem não acreditasse nessa baboseira teria sua suposta alma defumada no enxofre por um bilhão de anos. Ou era torturado, empalado, enforcado ou queimado em praça pública.

Mas preciso admitir: nos últimos tempos, vivi uma maravilhosa experiência transcendental cem por cento brasileira, bebericando o Santo Daime. O Santo Daime é um movimento religioso que começou no Acre, perto da fronteira com o Peru, nos anos 20, quando o maranhense Raimundo Irineu Serra fundou uma comunidade de pessoas bebedoras de ayahuasca, um chá alucinógeno indígena obtido pela cocção de duas plantas, o cipó Jagube (Banesteriopsis caapi) e a folha Rainha (Psicotrya viridis). Desde então o ritual veio conquistando adeptos até chegar no sul maravilha nos anos 70. A convite de amigos, numa fazenda em que se encontravam diversos daimistas fui convidado a participar de uma sessão especial não oficial.

A coisa funcionou da seguinte maneira: as pessoas reuniram-se e começaram a cantar hinos religiosos melodicamente muito simples, que evocam uma fusão frequente de Jesus Cristo com o Daime. São pequenas canções otimistas que falam de bênçãos, felicidade e cura. A música é acompanhada por chocalhos indígenas, e a cerimônia é de um sincretismo caboclo. Talvez por conta do caráter informal daquela turma específica, havia um cigarro de maconha que eles chamavam de "pito" e era oferecido aos interessados como relaxante. Então, todos bebemos o chá. Adultos, idosos e crianças beberam em copos, e os bebês em conta gotas. O gosto é ruim; é amargo, é como uma mistura de água com um pouco de terra. As orações continuaram e de repente o chá fez efeito e começaram as alucinações individuais junto com um mal estar estomacal (algumas pessoas vomitaram). Os daimistas mais experientes, denominados "fardados" estvam sempre próximos, zelando pacientemente por nós, os iniciantes. Quando senti que comecei a alucinar, pensei: Oba, vou curtir um passeio por lindas paisagens imaginárias! Eu tinha um pequeno quadro em minha sala, um pastel que retratava um trigal, então tentei remeter-me a aquelas colinas bucólicas. Mas não consegui. A primeira sensação e a primeira imagem foi a visão de um universo negro e profundo, um hiperespaço infinito e impessoal. E então, num silêncio absoluto, tornei-me espectador de um show de formas caleidoscópicas. Sobre o vasto fundo negro surgiram arestas luminosas, como neons, em diversas cores. Enxerguei uma gigantesca evolução de formas geométricas no espaço suspenso. Cubos transformavam-se em poliedros e faziam maravilhosas rotações, e as alucinações em nada obedeciam aos meus desejos. Tive, portanto, a sensação de entrar em um novo mundo desconhecido, misterioso e autônomo. O grande tamanho das formas sublimes e seu desenvolvimento independente tornaram-me pequeno e humilde. Pude então compreender porque as pessoas transformaram o chá em religião, eu estava sendo apresentado a algo muito maior que minhas convicções e percepções podiam conceber, e isso era o Daime. No segundo momento de minhas visões, as formas geométricas deram lugar a imagens estáticas, e o silêncio parecia ainda mais completo. Enxerguei serpentes e esqueletos humanos, e eles nada tinham de amedrontador; eram como slides fantásticos projetados no espaço, e que mudavam lentamente, sem pressa. Eram enigmáticos, e eu não conseguia atribuir-lhes nenhum significado. O momento seguinte foi racional, matemático. Enxerguei paisagens, e elas eram todas esquadrinhadas e as perspectivas, os pontos de fuga, sugeriam equações perfeitas. A imensidão ganhou uma densidade transparente. Deitei-me no chão, com os braços abertos e olhando para cima. Um fardado aproximou-se e disse: pergunte ao Santo Daime o que quiser. E então comecei a pensar em mim, questionar minhas opções, meu desenvolvimento, minha personalidade. Foi como uma psicanálise intensa, focada e elucidante. Este momento não era místico, pois era uma reflexão hiper-realista. Não havia transe. Pude pensar em como as pessoas me enxergavam no mundo, entendi qual era o meu jeitão e como minha personalidade encaixava-se nas diversas situações. No momento seguinte, tudo transformou-se. Acima do teto, por trás do telhado havia uma luz azul clara tão intensa, que parecia que ia destruir a construção. Olhei para meu corpo, e podia ver meu coração por sob a pele, como uma lâmpada incandescente, igualmente azulada. Eu estava pasmo, com um sentimento agradável de gratidão generalizada. Nesse momento, outro fardado aproximou-se e disse que era o momento de finalizar a cerimônia. Algumas orações foram retomadas, e depois fomos dispensados. Apesar do fim da festa ter sido decretado, eu continuava completamente maluco. Uma mulher aproximou-se de mim, seu rosto era de cera, e a qualidade da resolução gráfica da alucinação era total. Eu não sabia quando o barato ia acabar. Uma mulher ao meu lado entrou em desespero: sua filha dormia tranquilamente ao seu lado, e ninguém conseguia convencê-la de que a criança não estava morta. Em pleno surto psicótico, ela dizia que vários pequenos demônios com chifre, rabinho e tudo estavam saindo às dezenas de sua boca. Era tarde da noite, fui dormir um tanto assustado, mas acordei alegre e leve como um anjinho.

Por essas e por outras recomendo o Daime aos curiosos em geral, e mais especificamente para os artistas plásticos, com algum risco: a bad trip deve ser terrível.

O Daime é uma droga muito poderosa e pelo fato de ser originária da Amazônia, é tratada por seus adeptos como pura, natural e ecológica. Penso em seu potencial mercadológico, e vejo que o Daime poderia ser mais um vértice para modificar a perseverante trindade brasileira do samba, da mulher e do futebol. No final de minha experiência, ainda impactado pela intensidade inédita da minha piração, cheguei a pensar que o Daime seria a solução para vários problemas nacionais e que, se bem trabalhado nas mais canalhas técnicas do marketing capitalista, vôos lotados de europeus entediados pousariam diretamente em pistas estrategicamente construídas na floresta, decoradas com araras e imagens religiosas. Para um brasileiro, dói saber que mais turistas visitam o pequeno Uruguai do que a vastidão continental de nossas variadas geografias...

Evidentemente, os daimistas não pensam como eu, levam sua religião a sério e tem preocupações dignas com o bem estar dos membros de suas comunidades e com a preservação do meio ambiente. Por essas e por outras, o Daime prossegue na legalidade e minha opinião é que seria um absurdo retrógrado e falso-moralista criminalizar seu cultivo e sua ritualização. Mas moramos no Brasil, e temo pelo dia que um daimista encrencar com um fazendeiro ou mexer com a terra grilada de um político de Brasília. Então, a farra acabará de um minuto para o outro. Assim, conclamo todos os interessados a experimentar o Santo Daime ao mesmo tempo que reafirmo minhas convicções materialistas dialéticas. E aproveito para convidar os lúcidos a viver os últimos momentos da decadência da objetividade. O mundo, cada dia mais lamentavelmente, atola-se irreversivelmente num obscurantismo abjeto.

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