Texto para programa do espetáculo Baile Estelar 2005

Por Guga Stroeter

O patriotismo evoca sentimentos primitivos de territorialidade. O ser humano contemporâneo herdou este complexo de espécies pré-hominídeas: desta linha pra cá tudo é meu, tudo é nosso. Da fronteira pra lá, há que rivalizar, ou, no mínimo, desconfiar. Diversas tribos não se deram ao trabalho de criar um nome para seu povo, mas contentam-se com uma definição simples e eficiente, onde somos “nós” e os outros são “eles”. É essa uma interessante organização dicotômica do mundo.

A psicanalista Melanie Klein localizou esse procedimento na alma infantil, e batizou-o de “esquizo-paranóide”. Essa nomenclatura parece adequada e vale para cães contra gatos, palmeirenses contra corintianos, brancos contra negros, brasileiros contra argentinos, cristãos contra muçulmanos, terráqueos contra ETs. Seria ingênuo crer que a recente crosta de racionalidade adquirida pelo homem moderno conseguiria pairar airosamente sobre emoções tão brutas, selecionadas evolutivamente por centenas de milhões de anos. Resta-nos aguçar a critica para que, no mínimo, não sejamos manipulados por canalhas que consigam administrar esta colossal energia. É desnecessário mencionar exemplos de quantos tipos na história justificaram atrocidades com esses argumentos irracionais e, no entanto, poderosos.

Então pensamos na incumbência do que quer dizer ser brasileiro. Isso é algo que flutua historicamente nos ciclos econômicos e que atualiza-se de maneira distinta a cada manhã. Em nossas depressões coletivas, sem nos darmos conta, passamos a admirar a cultura dos dominadores europeus e norte-americanos. Em lampejos de pequenas euforias, verificamos o crescimento do arquétipo oposto, centralizador, quando todas as evidências parecem convergir para a necessidade urgente de reconhecimento de que sejamos talvez a única cultura capaz de mostrar ao mundo uma utopia possível.

Recentemente, para minha surpresa, fui procurado por uma séria e reconhecida equipe da BBC de Londres. Eles visitavam o Brasil, procuravam pessoas de diversos extratos da sociedade para conversar livremente, numa pesquisa/reportagem em que viajavam os continentes estudando a inapelável emergência de 4 países à condição de potências econômicas desenvolvidas. Daí, a simpática sigla BRIC, respectivamente Brasil, Rússia, Índia e China. Como resultado de nossa conversa ficou a sensação de que esta certeza dos estudiosos ingleses ainda não está entranhada nem no cotidiano nem no planejamento estratégico dos cidadãos brasileiros.

Vivemos numa criativa bolha de interesse do brasileiro pelo Brasil. Na última década, nossa auto estima parece ter aumentado, nosso terrível complexo terceiromundista recuou sensivelmente. O pentacampeonato de futebol, o reinado de Gisele Bundchen, a ascensão de um operário à presidência, atraíram holofotes sobre nossa alegre diversidade. Particularmente na música, isso é muito simples de localizar. Nos anos 80 a crítica intelectualizada dos grandes veículos enaltecia ridículos grupos de rock ingleses e alemães, que não eram levados a sério nem mesmo em seus locais de origem. Hoje o colunismo preocupa-se mais com o comportamento sexual de Sandy e Vanessa Camargo.

Vivemos num riquíssimo momento de crise: para a felicidade da música as grandes gravadoras estão falindo, e o esquema abjeto do jabá está em franca decadência, apesar de ainda dominar as grandes rádios e a podridão dos programas de auditório de domingo da TV brasileira. A crítica dos principais jornais é cooptada, ou no mínimo conivente. No exterior, continuamos a vender barato o que Oswald de Andrade chamava de “macumba para turistas” ou seja, estereótipos "primitivos" de extratos artificiais de matéria prima cultural (a sexualidade escandalizante de bundas exóticas, pedaços esquartejados de corpos femininos, sem rosto ou nome) e prosseguimos importando, pagando caro por produtos culturais manufaturados (Madonna vestida de Gaultier). É o imperialismo, é a submissão, a territorialidade (cultural) alheia que desde sempre se impõe econômica e militarmente.

Sim, estamos, para nossa felicidade, no gargalo de uma dolorosa crise, sem saber ao certo no que resultará. Os velhos modelos dão mostras de decrepitude e as novidades são difusas. É impossível arriscar no que resultará. Os estudiosos das teorias dos sistemas chamam isso de surgimento de uma singularidade, algo tão distinto do que é hoje, que não seria o desconhecido mas o “inconhecível”. Novas mídias, novas velocidades, novas filosofias.

Nessa turbulência, encontramos São Paulo fervilhando. A vila depressiva do século XIX com seus 22 mil habitantes, inchou-se, alastrou-se como uma metástase cancerígena. No novo milênio, parece começar a produzir cultura e não apenas consumir as diversas outras. Batalhões de jovens, oriundos de diferentes regiões da cidade e de distintas classes sociais estão tocando, dançando, pintando; misturando artes, inescrupulosamente.Tamanha efervescência é inédita nas últimas décadas. Na música, há quem busque nutrir-se e preservar tradições e memórias, e há quem dedique-se a sobrepor e fundir tudo. Não sobra espaço para nostalgia. Hoje respira-se criatividade e vitalidade. Na dança, na pesquisa do corpo, o panorama é ainda mais interessante.Tudo é ainda fresco, recente, as coisas ainda estão por se fazer. E quem está mergulhado nessa busca está contribuindo na criação de uma vindoura identidade do movimento e da dança brasileira.

Nessas encruzilhadas, surge o Baile Estelar: canções clássicas da MPB do período das década 30 a 50 do século passado, quando surgem as cidades, as rádios e a cultura de massa, ou seja, quando surge o modelo de homem que somos nós que aqui estamos. Vamos tocar essas canções para novas gerações. O jovem que já dançou o forró, descobriu o samba raiz, pode ser arrebatado pela rica engenhosidade desse repertório. Vamos dar vida a essas canções com arranjos acústicos, com o calor da mão no couro, com o calor do ar dos pulmões nos instrumentos de sopro. Vamos dar vida a essa música no corpo de bailarinos contemporâneos que fundirão a técnica clássica à capoeira, ao samba, ao street dance. Tudo se organizará sob o generoso arcabouço do teatro-dança, da sensibilidade e alegria peculiares de José Possi Neto. E aí, onde reside a ousadia experimental, mesmo sem procurar, encontraremos o entretenimento, o family show de acabamento impecável, de acordo com os parâmetros do show bizz do capitalismo cosmopolita e globalizado. No elenco: pernambucanos, baianos, paulistas, mineiros, gaúchos, maranhenses, amazonenses, nipobrasileiros e cubanos.

Mãos à obra!

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