JAZZ

Por Guga Stroeter

A revista cultural Bravo solicitou uma resenha sobre o lançamento de uma coleção de cds contendo gravações históricas do jazz. Além da crítica, Guga Stroeter reflete sobre algumas questões concernentes a esse gênero musical.

Não é difícil concordar com aqueles que acreditam que o jazz foi uma das manifestações musicais mais interessantes do século XX. No mínimo somos obrigados a reconhecer a riqueza da dramática epopéia do gênero e de seus personagens, desde os anos dez até o ano 2000. Além disso, a história do jazz coincide cronologicamente com a história da música gravada e nesses nossos tempos de reavaliação dos diversos setores da produção cultural, podemos nos debruçar na alma da música e beber dos seus melhores momentos. Pensando nisso, a Sony Music lançou sua "Jazz Collecion" com os 19 seguintes álbuns: Friday Night in San Francisco (Di Meola/McLaughlin/De Lucia); V.S.O.P. (Hancock/Hubbard/Carter/Shorter/Williams); Lady in Satin (Billie Holiday); Ellington at Newport 1956 ( Duke Ellington); She was too good to me (Chet Baker); Sophisticated giant (Dexter Gordon); Black, Brown, & Beige (Duke Ellington); Sketches of Spain (Miles Davis); Marsalis plays Monk (Wynton Marsalis); Mingus Dynasty (Charles Mingus); Heavy Weather (Weather Report); Miles Ahead (Miles Davis); Piano Player (Bill Evans); Kind of Blue (Miles Davis); Porgy and Bess (Miles Davis); Gone with the Wind (The Dave Brubeck Quartet); An Evening with Herbie Hancock & Chick Corea; Monk Alone (Thelonious Monk) A seleção dessas gravações é de uma obviedade genial; afinal de contas por que ninguém havia pensado em lançar esses títulos fundamentais antes? Pois essa coleção contém obras primas e faixas que são marcos na história do jazz, onde estruturas foram criadas com tamanho ineditismo que a música, à partir de então, nunca mais foi a mesma. O cd "Kind of Blue" gravado por Miles Davis em 1959 é um bom exemplo. Além de contar com a participação de grandes solistas como "Cannonball" Adderley e Jonh Coltrane, esse disco provocou uma guinada em todo o pensamento harmônico tradicional. Na faixa Blue in Green, o pianista Bill Evans inclui definitivamente o impressionismo de Debussy dentro da linguagem do jazz ao abandonar os encadeamentos tonais e propôr o recurso das escalas modais gregas, abrindo um vasto campo de possibilidades que vem sendo pesquisadas até hoje. Outro momento histórico é a suite Diminuendo in blue and Crescendo in blue, gravada por Duke Ellington e sua orquestra em 1956. Naquela altura os pequenos grupos de cool jazz já estavam estabelecidos, e a big band de Ellington soava um tanto jurássica aos ouvidos da platéia moderna. Mas eis que durante o concerto a banda ataca um arranjo de um blues alterado e o saxofonista Paul Gonçalves vem à frente e inicia uma longa improvisação. O desenvolvimento do solo enlouquece o público e gradativamente instaura-se no festival um imponderável fenômeno de histeria coletiva. Esta grande catarse está registrada no cd e o impacto dessa apresentação assumiu uma dimensão tal que Ellington nas semanas seguintes foi capa da revista Times e a partir daí, a orquestra readquiriu, desta vez em caráter vitalício,a condição de instituição acima do bem e do mal. Também históricos são os encontros de Miles Davis com Gil Evans (Porgy and Bess, Sketches of Spain, Miles Ahead). Nesses discos, Gil Evans ousa na abertura das vozes dos sopros, produzindo timbres e harmonias que revolucionaram o conceito de big band, criando uma sonoridade híbrida e uma sofisticação só encontrada na música de concerto. O disco The Quintet V.S.O.P. é também interessante, pois é um reencontro em 1977 do quarteto que acompanhou Miles Davis no começo dos anos 60, com Freddie Hubbard substituindo Miles. Herbie Hancock, Wayne Shorter, Ron Carter, Tony Williams usaram de maneira tão brilhante todas as conquistas estruturais das gerações anteriores que ficou impossível ir adiante sem uma grande implosão estilística. Depois deles, os caminhos seguidos foram a rebeldia do free jazz, onde aboliu-se a melodia, a harmonia e o ritmo; e a fusão com o rock e o pop. Outro mérito da Jazz Colletion é conter jazz para quem gosta de boa música mas não é especialista em jazz. São definitivas as interpretações de standards por Billie Holiday em "Lady in Satin", sempre vale a pena ouvir as melodias improvisadas pelo saxofonista Paul Desmond no quarteto de Dave Brubeck em "Gone with the wind". E nos remetendo a esse mundo repleto de música é impossível que qualquer um de nós não se pergunte: para onde vai o jazz?

Depois da experimentação dos anos 60 e da fusão dos anos 70 e 80 temos uma nova geração de músicos reverenciando o jazz tonal e modal. O renascimento do jazz acústico encabeçado por Wynton Marsalis a quinze anos atrás hoje é um conceito cristalizado e estabelecido. Hoje não temos ninguém levando adiante o Miles Davis pesado e eletrônico dos anos 80, mas temos jovens solistas revitalizando Armstrong , Ellington, Monk.

A nova geração de instrumentistas é brilhante. Todos conhecem a trajetória completa do jazz. Em cada novo saxofonista, trompetista, pianista, baixista, baterista, percebemos a presença de todos os mestres anteriores. Músicos altamente técnicos estão dosando o seu virtuosismo individual em prol de uma música compartilhada pelo grupo e utilizando inteligentemente a própria diversidade interna das linguagens estudadas; quebrando a monotonia e o exibicionismo aborrecido que vinham tornando os concertos de jazz num amontoado de solos narcisistas e enfadonhos. Hipotéticamente temos todos os ingredientes para que o novo jazz torne-se uma mania entre os jovens, no entanto, pelo menos até o presente momento, não é isso que verificamos. O jazz diz tanto à juventude quanto a ópera ou a música de concerto. O mundo é como é. O mundo não é como os músicos de jazz gostariam que ele fosse.

A evolução da música popular dos anos 50 para os nossos dias passou a privilegiar a batida forte e o conteúdo das letras em detrimento da relação entre a harmonia e a melodia. A atenção do ser humano é incapaz de valorizar todas as informações simultaneamente, portanto se um instrumento antes coadjuvante torna-se protagonista é porque algum outro saiu de cena. Analisemos metaforicamente a história da orquestra de Duke Ellington. Duke tratava seus músicos de sopro a pão-de-ló e conseguiu manter os mesmos solistas com ele dos anos 20 aos anos 70, ou seja, até a morte biológica destes. Ao mesmo tempo, trocou inúmeras vezes de baixista e de baterista. Por quê? Porque Ellington ouvia em sua cabeça desenhos e tessituras melódicas e harmônicas, trabalho esse que cabe a instrumentos melódicos. O baixista e o baterista eram a base de manuntenção do tempo e do ritmo mas não necessitavam de expressão pessoal. No panorama contemporâneo, essa hierarquia está invertida e a bateria é mixada para bater forte dentro do peito do ouvinte. A batida repetitiva é a essência do pop, e isso não tem nada de mau. Mas cabe parafrasear Nelson Rodrigues, quando afirmou que a televisão matou a janela, e pensar que talvez a disco music tenha sufocado o bebop.

E por quê o jazz teve que voltar à estética de décadas passadas? Talvez porque muitos caminhos já tenham sido explorados à exaustão e os experimentalismos romperam qualquer possibilidade de empatia com o grande público. É saudável para o jazz retomar suas origens, se realimentar dos mesmos dramas humanos que o geraram para caminhar á frente. Em algum momento da história ,o jazz distanciou-se da dança, da dualidade luto e euforia dos funerais da Louisiana mítica, tornou-se intelectual, abstrato e parabólico. Pois o jazz é uma modalidade peculiar de música de berço popular, mas que carrega o destino trágico de sofisticar a complexidade de sua estrutura além do limite da aceitação do próprio ambiente que o concebeu. Nesse aspecto, a história do jazz assemelha-se à paixão de Cristo.

Não sabemos para onde vai o jazz pois não se pode prever o que um artista vai fazer no minuto seguinte. Muitos garantem que o próximo passo será a fusão com ritmos étnicos, e nesse caso as culturas mais fortes e mais organizadas como a brasileira e a afrocubana prevalecerão. Para outros, o jazz simplesmente morreu, pois morreram Ellington, Monk, Coltrane, Miles Davis; e os jovens - os jovens apaixonados por esses mestres- não têm culpa disso. Outros pensam que a salvação do jazz seria assumir-se como a música erudita norte-americana, e migrar definitivamente para a academia e para as salas de concerto. Sempre que surge esse tipo de polêmica, podemos recorrer à afirmação de Louis Armstrong que nos diz que o jazz não é um "quê", mas um "como". É um procedimento e não um objeto. Nesse caso, o fazer jazzístico se enche de vitalidade e pode se concretizar em inúmeras outras formas de arte. Mas com um mínimo de bom senso, ouvindo novos lançamentos ou incorporando o jazz à trilha sonora de nossas vidas, atestamos que a verdade histórica que fundamenta o gênero é capaz de atravessar modismos com relativa tranquilidade. Talvez o jazz não seja a música do cotidiano do jovem do ano 2000, e certamente não tem a importância que teve nos anos 30 e 40; mas evidentemente não está moribundo. E para aqueles que insistem em decretar-lhe o óbito podemos afirmar: o jazz morreu mas passa bem.

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