SAADI, O POETA PERSA

Por Guga Stroeter

Esse artigo analisa questões relativas à cultura islãmica e a homossexualidade. Esse texto foi publicado na revista GLS Somos, da qual Guga Stroeter era colaborador colunista.

Talvez a maior incumbência de todos nós, adultos vivos, é garantir que no novo milênio a tolerância às diferenças prevaleça sobre a ignorância e os preconceitos diversos que a alma canalha de nós, seres humanos, não se cansa de reinventar a cada manhã. Num pequeno vilarejo ou numa megalópole; em um país ou num continente, os habitantes do sul fabricam motivos para viver com ódio da galera do norte! E vice-versa! Mas não custa pensar que nunca é tarde para ser feliz e que de uma maneira geral as coisas estão melhorando. A existência de uma publicação como Somos é uma prova disso. Na verdade, o assunto dessa matéria tem haver com o arrepio de pavor que muita gente sente quando perguntamos: O que você pensa sobre os muçulmanos? As pessoas logo imaginam um terrorista alucinado, decepador de mãos ou um fanático aprisionador de mulheres. Esse estereótipo tão propagado em todo ocidente é repleto de inverdades e tem, como tantos afetos coletivos, alguns motivos históricos..

Podemos começar pensando rapidamente no Egito dos faraós. Lá pelo ano 350 a.C., o Egito foi invadido, dominado pelas tropas de Alexandre O Grande, possivelmente o homossexual mais famoso e poderoso de todos os tempos. Como grande estadista e homem de elevada cultura, Alexandre ordenou que seus administradores não interferissem nos hábitos nem na religião dos egípcios, mas colocou lá sua dinastia de faraós, que conferiram a essa fase da história o nome de Período Ptolomaico, numa alusão a seu coronel Ptolomeu. A última governante da era ptolomaica foi Cleópatra que se meteu em muitas confusões sexuais e políticas e no fim das contas o Egito passou para administração dos romanos. Os romanos ficaram por lá, mandando e enchendo o saco até a invasão dos árabes, recém unificados pela religião muçulmana. Depois vieram os otomanos e seus jovens capitães mamelucos, que administravam o Egito à partir da Turquia. Na sequência, Napoleão numa viagem científica, meio de férias, achou o país tão lindo que conquistou-o militarmente nessa mesma oportunidade. Como não podia deixar de ser, no século XIX chegaram os ingleses. E pasmem: o primeiro líder do Egito de nacionalidade e mentalidade egípcia, desde os faraós, foi Nasser em 1948. Ou seja, o país foi dominado e escravizado pelas mais diversas culturas estrangeiras! Aquele lindo obelisco que substituiu a guilhotina na Place de la Concorde, em Paris, foi surrupiado dos templos de Karnak, nas margens do Nilo.

A unificação das aldeias árabes por Maomé resultou no período de maior expansão dessa cultura em todos os tempos. À partir daqueles povoados desérticos, os árabes conquistaram boa parte do mundo conhecido e rechaçaram sem esforços as tropas cruzadas da Europa. Por um longo período, a cultura árabe representou a vanguarda das ciências, da matemática, da arquitetura. E o que poucos sabem é que na verdade o Islamismo é uma evolução do Cristianismo. Basta citar que o anjo que recitou os versos do Corão nos ouvidos de Maomé foi Gabriel, aquele mesmo anjo que seiscentos anos antes, a alguns poucos quilômetros dali, veio à terra alertar os humanos para a chegada eminente de Jesus.

A posição geográfica do oriente médio é estratégica pois todas as rotas comerciais da África, da Europa, da Ásia e da Índia se afunilam ali. Por isso que há milênios sempre rola quebra-pau naquela área. A coisa piorou muito com a revolução industrial e o advento do motor a explosão, pois o petróleo, que antes não valia nada, passou a ser o combustível mais importante para transportar pessoas, mover as indústrias e aquecer os lares da Europa e dos EUA. E qual é a maneira mais simples de controlar o preço do petróleo? É, obviamente, invadir a região militarmente ou sustentar grupos ou dinastias que trabalhem em favor dos interesses estrangeiros. E mais uma vez, os países industrializados tornaram-se super agressivos para com os árabes e persas. A reação é proporcional, então grupos nacionalistas se articulam e muitas comunidades retomam dogmas religiosos islâmicos numa tentativa de resgate da cidadania. E todos sabemos que a grana e os meios de comunicação pertencem aos países de primeiro mundo, que tem muita facilidade de identificar seus opositores com o demônio junto à opinião pública. O Kuait, por exemplo, é um país artificial, não existia, pois era parte do Iraque. Então, os europeus fomentaram um grupo separatista que é mantido no poder para abrir as pernas para as grandes companhias petrolíferas. Não podia dar outra coisa que não a guerra.

Vamos raciocinar: qual é a diferença estrutural entre Khomeini e Dalai Lama? Ambos são escolhidos de Deus para governar seus povos, o que é perigoso e anacrônico. A diferença é que Dalai Lama é contra os chineses comunistas, então toda indústria cinematográfica americana o transforma num santo. Num santo que ele não é, pois se estivesse realmente preocupado com o oprimido, porque ia se dedicar a bajular o ACM, um notório representante das forças conservadoras? E Khomeini, por outro lado, se opôs aos americanos, e todos sabemos o bafafá que essa estória rendeu .

Mas então os muçulmanos são bonzinhos? E como justificar suas atitudes retrógradas, castradoras e moralistas? Bem, essa é uma longa discussão que merece uma análise muito mais aprofundada. E como o homossexualismo é visto nesses países? Certamente existe variação de região para região, afinal de contas esse mesmo assunto é abordado de maneira distinta no Rio de Janeiro e na Canapí de Rosane Collor. Mas vale prosseguir a reflexão à partir de um texto antigo da autoria de Saadi, o maior dos poetas persas. Saadi nasceu em Chiraz, no ano de 1184 e morreu velho, aos 107 anos de idade. Fez de tudo na vida: peregrinações, viagens, foi carregador de água em Jerusalém e foi por muitos anos escravo de cruzados e judeus em Trípoli. Sua obra trata de todos os assuntos. Ele era bofe, mas em diversos dos seus pequenos contos, a homossexualidade e o homoerotismo eram tratados como algo corriqueiro e encantador. Terminaremos assim, com uma pequena fábula que demonstra que entre invasões da embaixada americana e guerras do Golfo, a alma poética muçulmana pode ser mais sensível e condescendente do que nos apregoa a voz grave dos apresentadores dos telejornais. A tradução foi feita por Aurélio Buarque de Holanda em 1943.

O sedutor

Ouvi contar, em Istambul, que a filha de um cadi amava perdidamente o filho do chefe de uma quadrilha de ladrões. Como é fácil imaginar, esse rapaz era belo. Apesar de sua detestável reputação, as mulheres, quando o viam passar, olhavam-no com ternura, e pensavam sempre nele quando os maridos as possuíam. Assim são as nossas companheiras. Dai-lhes mel, e elas vos pedirão vinagre. Fazei-lhes carícias e lamentarão que não as sevicieis. Por mim, habituei-me a não pensar no que pode desejar a mulher que tenho entre os braços, e recordo-me frequentemente das palavras do sábio: " A fruta que comes não te diz se está satisfeita, ou não. Acaso a acharias mais saborosa se soubesses que ela está contente?"

Em resumo: a filha de um cadi amava o filho de um chefe de ladrões, o que já me parece muito interessante. Longe de ocultar sua paixão, ela dizia a quem quisesse ouvi-la: - "Eu acompanharia aquele rapaz ao país dos tártaros. Para merecer o seu amor, eu seria também capaz de roubar."

Não faltaram almas caridosas que levassem ao cadi as palavras de sua filha. Este, porém, homem de muita experiência, dizia a sorrir: - "Seria para mim um grande favor que ajudasses minha filha Nadjeh a encontrar-se com esse senhor ladrão." Se alguém se espantava, ele tornava a sorrir, acrescentando: - "Não vejo outro meio para curá-la de sua paixão ridícula."

Todos concordaram em que o juiz perdera a razão.

Certo dia, nosso ladrão, que praticara um crime horrível, teve, a um só tempo, o infortúnio de ser preso e a felicidade de comparecer perante o cadi.

- Alá! - exclamou este, de súbito - prefiro perder o meu cargo a condenar esse adolescente...

- Desesperado, o assessor do cadi gritou-lhe ao pé do ouvido:

- Estás louco? Ele matou um velho para roubá-lo.

- Evidentemente, o fato é deplorável - vociferou o juiz, com veemência maior - mas o diabo é muito belo! Repito: - não tenho coragem de puní-lo . Dêem-me um substituto! Realmente...não! Condeno-o, e a prisão perpétua. Ele cumprirá a pena em minha casa. Guardas, antes de levardes esse criminoso, ide dizer a minha filha que, por ordem minha, vá para casa de sua avó e não ponha nunca os pés em minha casa!

Apenas ficou sozinho com o assessor, o cadi suspirou diversas vezes, e murmurou depois:

- Eis a obra do amor!

- Está salva a honra da justiça - disse o outro.

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