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ROTEIRO BAILE ESTELAR

Um musical brasileiro concebido sobre canções da música popular das décadas de 20, 30, 40 e meados de 50 do século XX, interpretadas nos parâmetros das linguagens da dança e do teatro contemporâneos.

Projeto

GUGA STROETER

Direção

JOSÉ POSSI NETO

São Paulo, 2005

Crisantempo Produções Artísticas apresenta

BAILE ESTELAR

com

Orquestra Heartbreakers, cantores e bailarinos

FICHA TÉCNICA

Concepção e Roteiro:

GUGA STROETER e JOSÉ POSSI NETO

Direção: JOSÉ POSSI NETO

Direção Musical: GUGA STROETER

Coreografia: JORGE GARCIA

Cenografia: BRUNO TESTORE SCHMIDT

Figurinos: FABIO NAMATAME

Designer de luz: WAGNER FREIRE

Assistente de Coreografia: SUSANA MAFRA

Assistente de Cenografia: WILSON AGUIAR

Assistente de Figurinos: ELIANA LIU

Elenco

Bailarinos

ANDREA THOMIOKA

CAROL MARIOTTINI

DANIELA AUGUSTO

ERIC CURRY

GISELA MOREAU

HEBERT CAETANO

HENRIQUE LIMA

IRINEU NOGUEIRA

IVI MESQUITA

MILTON COATTI

MORENA NASCIMENTO

RITA BRANDI

cantores

ANTONIO PORTELLA

CARLL SANTOS

CRISTINA OLIVEIRA

Orquestra

EGIMAR-percussão

ELIASAFE COSTA- sax tenor, clarinete

GUGA STROETER- vibrafone

GUSTAVO RAMANZINI- bateria

LIENA HERNANDEZ- trombone, voz

MAURICIO ALVES- percussão

MONICA AGENA- violão

NOA STROETER- baixo acústico

PAULINHO VIVEIRO- trumpete

PEPE CISNEROS- piano, acordeon

RAPHAEL FERREIRA- sax alto, flauta

THIAGO RABELLO- bateria

Luz: ARMAZÉN DA LUZ

Som: HIGH SOM

Operador de som: EDUARDO JACKSON

Direção de Produção: GISELA MOREAU

Produção Executiva: CAROLINA RODRIGUES

Assistência de Produção: ANDRÉA BRANDI E NINA CAVALCANTI

Produção Heartbreakers: GLEICE UCHINO

Assessoria de Imprensa: MANOEL CARLOS JUNIOR

Fotos: RONALDO AGUIAR

APRESENTAÇÃO

BAILE ESTELAR é o terceiro espetáculo da trilogia que marca a parceria artística do diretor José Possi Neto e do músico Guga Stroeter.

Movidos pela convicção de que a música produzida nas três Américas (Estados Unidos, Cuba e Brasil) é uma das manifestações artísticas mais engenhosas da história contemporânea, José Possi e Guga criaram em 1988, Emoções Baratas (com trilha de Duke Ellington) e em 1992, Mucho Corazon (sobre repertório do cancioneiro latino-americano); sempre fundindo a música de orquestra ao vivo com a linguagem do teatro-dança.

Em 2005, decidiram juntar-se mais uma vez para trabalhar em o BAILE ESTELAR, agora pesquisando a alma da música e do corpo brasileiro.

O BAILE ESTELAR

O "Baile Estelar" é um espetáculo musical, sem textos nem diálogos, com coreografias contemporâneas para canções clássicas da música popular brasileira das décadas de 20, 30, 40 e 50 do séc XX. A orquestra tem a seguinte instrumentação:

-3 cantores (as)

-1 trumpetista

-1 trombonista

-2 saxofonistas

-1 vibrafonista

-1 pianista

-1 violonista

-1 baixista acústico

-2 percussionistas

-1 baterista

São, portanto, 11 músicos, mais 3 cantores (as).

O corpo de baile é composto por 10 bailarinos.

Os cantores e a orquestra apresentam um repertório com estilos diversos como o samba, o afoxé, o samba canção, a gafieira, o samba de breque, o maxixe, a marcha de carnaval, o samba de roda, e repertório da tradição religiosa afro-brasileira.Recorremos a composições diversas, várias delas da autoria de Caymmi, Ari Barroso, Noel Rosa, Luis Gonzaga, Pixinguinha.

Os personagens do elenco por vezes estão no palco, mas também atuam no meio da platéia, nos mezaninos, dançando, cantando ou desenvolvendo cenas roteirizadas.

Estamos tratando da estética do teatro-dança contemporânea e de suas possibilidades abstratas; ou seja, muito mais focada na busca da essência dos fenômenos movimento/drama/expressão/corpo, do que contar uma história de começo, meio e fim. A relação entre cena e personagens tem um alinhavamento pouco explicativo, não cronológico e tampouco preocupado com causalidades.

REPERTÓRIO DE "O BAILE ESTELAR"

AQUARELA DO BRASIL (ARI BARROSO, 1939)

APITO NO SAMBA (LUIS BANDEIRA,1958)

JOÃO VALENTÃO (DORIVAL CAYMMI, 1953)

QUINDINS DE IAIÁ (ARI BARROSO, 1941)

O QUE QUE A BAIANA TEM? (DORIVAL CAYMMI, 1938)

RANCHO FUNDO (ARI BARROSO E LAMARTINE 1931)

PAU DE ARARA (GUIO DE MORAES E LUIZ GONZAGA, 1952)

ACAUÃ (ZÉ DANTAS, 1952)

XAXARÁ (ARI COLARES E DINO BARIONI)

CHORO 7 (HEITOR VILLA LOBOS, 1924)

OXAGUIAN (DOMÍNIO POPULAR, ARRANJO ARI COLARES E DINO BARIONI)

CHÃO DE ESTRELAS (SILVIO CALDAS E ORESTES BARBOSA,1937)

CURARE (BORORÓ, 1940)

MORENA BOCA DE OURO (ARI BARROSO, 1941)

PISTON DE GAFIEIRA (BILLY BLANCO, 1959)

ORORA ANALFABETA (GORDURINHA E NASCIMENTO GOMES,1959)

SAMBAS DE RODA (FOLCLORE BRASILEIRO)

JUÍZO FINAL (NELSON CAVAQUINHO E ELCIO SOARES, 1973)

O ROTEIRO E SUA ANÁLISE

(MAIS LETRAS DAS CANÇÕES E BIOGRAFIA DOS AUTORES)

O trabalho de construção do roteiro que antecedeu o início dos ensaios forjou-se com procedimentos peculiares. Primeiramente, uma pesquisa das canções do período investigado, que teve, como principal critério a capacidade imagética e seu potencial para o

desdobramento coreográfico. Infinitos repertórios poderiam ser montados com a música do período, mas as canções acima listadas foram mostrando-se apropriadas para amarrar o discurso pretendido.

Paralelamente, desenvolveu-se um roteiro dramático/psicológico da sucessão de emoções que pretendíamos visitar com esse espetáculo.

Por ser um show sem textos falados e sem personagens muito definidos esse esqueleto tornou-se fundamental para a elaboração de todas as etapas: da luz, da dança, dos figurinos.

A idéia foi conduzir o público (e também os artistas) a uma jornada arquetípica supra-pessoal, mas que ao mesmo tempo desvelaria a riqueza da cultura brasileira.

O nome do espetáculo tem algo a ver com isso: antes de ser um "Baile Estelar", temos obviamente um "Baile Brasileiro". Para representar nossa pretensão imodesta de tratar da condição humana muito mais do que uma realidade nacional, ampliamos a abrangência do rergional para a metáfora "estelar". Vivemos um perigoso momento na história de conflitos entre nações estado, de acirramento de rivalidades, de demonizações do outro. Resolvemos, então, mergulhar na nossa tradição cultural mas com o cuidado de não evocar patriotismos.

Musicalmente o comportamento orquestral é "clássico": a big band acústica, uma das mais exuberantes formações da música popular do séc XX.

As coreografias, no entanto tem uma intenção experimental. Não poderia ser "clássica-brasileira contemporânea" pois essa linguagem que já está relativamente estruturada na música popular, ainda é uma instigante incumbência para as novas gerações de artistas do corpo.

O espetáculo Baile Estelar, grosso modo, divide-se em 3 partes separadas por transições:

-PRIMEIRA PARTE: abertura, o Brasil cinematográfico, que é para "inglês ver" mas que é muito brasileiro (e não há porque envergonhar-se dele).

-SEGUNDA PARTE: ciclo mistério, torpor, transe, morte, renascimento.

-TERCEIRA PARTE: a vida, a gafieira, a celebração.

Desenvolveremos uma análise canção por canção, coreografia por coreografia da intersecção do pré-roteiro original com o resultado obtido após o processo de ensaio.

PRIMEIRA PARTE

1.IMPROVISAÇÃO MUSICAL: O MUTIRÃO, A OBRA

Enquanto o público entra, o elenco está "construindo o espaço", serrando, martelando, pregando. Os sons quase aleatórios nos remetem à música concreta. Estamos aí explorando o limite entre ruídos e sons musicais, e estamos todos construindo algo. Essa metáfora vale para o Brasil: é algo novo que todos a cada dia estamos trabalhando para que tome forma.

Os sons da obra vão se organizando e, paulatinamente transformam-se numa batucada de samba.

2. AQUARELA DO BRASIL: A MUDANÇA DOS SEM TETO, DOS SEM TERRA, DOS SEM PROPRIEDADES MATERIAIS

A orquestra ataca Aquarela do Brasil, enquanto o elenco de bailarinos entra em cena, lenta, dramática e sorrateiramente, carregando objetos, metaforizando "uma mudança de casa de quem não tem casa". São os sem-teto e os sem-terra. Carregam trouxas, panelas, televisores velhos. Exploramos aí um contraste: Aquarela do Brasil, que seria ideal para uma abertura hollywoodiana é usada com alguma ironia, pois a ação é crítica e não ufanista. Enquanto a música se move com euforia, os bailarinos movimentam-se numa luz e ritmo totalmente opostos.

SOBRE AQUARELA DO BRASIL E ARI BARROSO

Até o surgimento de A garota de Ipanema no final dos anos 50, Aquarela do Brasil foi a canção mais conhecida da história da música brasileira. Internacionalmente ela é conhecida como "Brazil" e muita gente a confunde imaginando que Aquarela é o hino do Brasil. Esse

engano não é insensato, pois é uma composição de louvor à pátria e seu arranjo é repleto de voluptuosidades ufanistas que soariam muito bem numa banda militar. Os primeiros compassos da introdução (se não me engano criados por Radamés Gnatali), é uma melodia

intervalar sempre tocada nos trumpetes como um toque de sentinela, um toque do alvorecer dos quartéis. Já no quinto compasso, vira samba e então estamos devidamente contextualizados. Aquarela foi composta durante o período da ditadura de Getúlio Vargas, num período em que o nacionalismo flertava com o nazi-fascismo emergente na Europa. O Brasil se industrializava, a radiodifusão começou a criar um caráter unificador, o embrião de uma identidade nacional moderna. Pela primeira vez de uma maneira mais imediata notícias e culturas do sul e do norte repercutiam rapidamente, dialeticamente. Getúlio implantou as primeiras leis trabalhistas e aglutinava em torno de si o arquétipo do grande pai austero e provedor. A própria intelectualidade perece ter sido cooptada pela propaganda do regime, e tanto a pintura quanto a literatura e a música exultavam as raízes e a grandeza do Brasil.

Aquarela do Brasil é de fato uma composição engenhosa. As melodias da primeira parte são sincopadas, rítmicas na batida do samba e contrastam com o relaxamento do refrão "Brasil, Brasil", que tem algo de confortável, de maternal, de carinhoso. Os arranjos

invariavelmente exploram essas características dramáticas. No Baile Estelar, optamos por um "cover" do célebre arranjo de Severino Araújo e Orquestra Tabajara. Nada mais típico do que a Tabajara, que desde os anos 30 até hoje (Severino continua regendo a orquestra

com 90 anos) vem transformando tudo em gafieira. É melhor mesmo que nos detenhamos na versão instrumental de Aquarela. A letra é superlativa e as vezes irritantemente pleonástica, como nos versos "Brasil brasileiro" (todo Brasil é brasileiro!) e "o coqueiro que dá côco" (todo coqueiro que se preza da côco, no Brasil ou na China); e alguns adjetivos parnasianos, tão incompreensíveis quanto do hino nacional (o que seriam um "mulato inzoneiro" e um "lábaro estrelado"?).

ARI BARROSO (07/11/1903 - 09/02/1964)

INICIOU-SE NA MÚSICA AINDA MUITO JOVEM. EM 1920 TRANSFERIU-SE PARA O RIO DE JANEIRO COM O OBJETIVO DE CURSAR A FACULDADE DE DIREITO, MAS EM 1922 ABANDONOU OS ESTUDOS E COMEÇOU A TRABALHAR COMO PIANISTA EM SALAS DE CINEMA. ATUOU EM VÁRIAS ORQUESTRAS DE DANÇA. INGRESSOU NO TEATRO MUSICADO E ESCREVEU MÚSICAS PARA MAIS DE SESSENTA PEÇAS. APAIXONADO POR FUTEBOL, FLAMENGUISTA INVETERADO, ARI BARROSO ESTRÉIA COMO LOCUTOR ESPORTIVO EM 1935. EM 1937 NA RÁDIO CRUZEIRO DO SUL INAUGURA O PROGRAMA CALOUROS EM DESFILE E EM 1939 LANÇA O SEU MAIOR SUCESSO AQUARELA DO BRASIL. ARI BARROSO MORREU NO RIO DE JANEIRO EM UM DOMINGO DE CARNAVAL.

3. APITO NO SAMBA: ABERTURA SUPERAÇÃO DA DIFICULDADE PELA ALEGRIA

-a banda ataca Apito no samba, e agora sim temos a chegada do dia, das luzes da alegria. A música exuberante, com apitos e batucada conduz a movimentação intensa de todos os bailarinos. Os bailarinos agora já possuem contornos de personagens. É uma explosão sensorial. Até certo ponto, Apito no Samba redunda com Aquarela do Brasil. Tem o mesmo apelo histórico e musical, são identicamente ufanistas. Há um diferencial: o compositor de Apito é pernambucano e há algo de nordestino, de xaxado, um sotaque de Luiz Gonzaga na primeira melodia da composição. No roteiro do Baile Estelar, o Apito no Samba cumpre uma função de INTENSIFICAÇÃO dos elementos caracterizadores de Aquarela. No Apito, acontece uma batucada escancarada coordenada e excitada pelo som de apitos. O Apito no Samba é mais rápido que Aquarela e esta velocidade somada à batucada terá função adrenérgica. Os bailarinos que estarão em cena realizam passos e danças acrobáticas. Essas acrobacias devem ser repetitivas e ao final da canção teremos o impacto da abertura concretizado.

LUIZ BANDEIRA ( 25/12/1923 - 22/2/1998)

ESTREOU NA CARREIRA ARTÍSTICA EM 1939, EM UM PROGRAMA DE CALOUROS DA RÁDIO CLUBE DE PERNAMBUCO, QUE O CONTRATOU EM SEGUIDA. FOI VIOLONISTA, RADIO-ATOR E CANTOR DE ORQUESTRA. EM 1950 MUDOU-SE PARA O RIO DE JANEIRO, ONDE TRABALHOU COMO CROONER NO COPACABANA PALACE E NA RÁDIO NACIONAL. NESSA DÉCADA SUA ATUAÇÃO COMO COMPOSITOR SE DESTACA. TEVE OUTROS SUCESSOS NOS ANOS 50, ENTRE OS QUAIS SUA COMPOSIÇÃO MAIS CONHECIDA, "NA CADÊNCIA DO SAMBA", UTILIZADA COMO TEMA DO CINEJORNAL CANAL 100, SOBRE FUTEBOL. TAMBÉM CONHECIDA COMO "QUE BONITO É". BANDEIRA COMPÔS JINGLES COMERCIAIS, FOI PRODUTOR E COMPOSITOR DE FREVOS E BAIÕES, ALÉM DE SAMBAS E MARCHAS. ENTRE SUAS COMPOSIÇÕES MAIS CONHECIDAS ESTÃO "O APITO NO SAMBA" (COM LUIZ ANTÔNIO), "CAFUNDÓ", "ONDE TU TÁ, NENÉM", "TOREI O PAU", "VOLTA" E "VOLTEI, RECIFE".. NO FINAL DOS ANOS 80 APOSENTOU-SE E VOLTOU A MORAR EM RECIFE.

LUIZ ANTÔNIO (16/4/1921 - 1/12/1996)

COMPOSITOR DESDE OS 14 ANOS, O CARIOCA ANTÔNIO DE PÁDUA VIEIRA DA PASSOU A COMPOR PROFISSIONALMENTE EM 1948, E SUA PRIMEIRA CANÇÃO GRAVADA FOI "SOMOS DOIS"), POR DICK FARNEY. EM 1951, OBTEVE GRANDE SUCESSO COM O SAMBA DE CARNAVAL DE CUNHO SOCIAL "SAPATO DE POBRE" (COM JOTA JUNIOR), NA INTERPRETAÇÃO DE MARLENE, ENTÃO, NO AUGE DA FAMA. EM 52, A MESMA CANTORA GRAVOU "LATA D’ÁGUA" (NOVA PARCERIA COM JOTA JUNIOR), O MAIOR SUCESSO DE SUA CARREIRA. AINDA EM 52, A VEDETE VIRGÍNIA LANE TAMBÉM ROUBOU A CENA COM SUA GRAVAÇÃO DA MARCHA "SASSARICANDO". ENTRE 1959 E 62, VIRIA A FASE DO “SAMBALANÇO”, ESPÉCIE DE SAMBAS CADENCIADOS, PORÉM SOFISTICADOS, LANÇADOS NAS BOATES CARIOCAS DE ENTÃO E DE ALGUNS MAIS ROMÂNTICOS NA FRONTEIRA ENTRE A BOSSA NOVA E O SAMBA-CANÇÃO. FOI A ÉPOCA DE CANÇÕES COMO "MENINA MOÇA", "MULHER DE TRINTA", "POEMA DO ADEUS", TODAS LANÇADAS PELO CANTOR MILTINHO, E REGRAVADAS LOGO A SEGUIR POR DIVERSOS INTÉRPRETES, COMO HELENA DE LIMA, DÓRIS MONTEIRO, CAUBY PEIXOTO, MAYSA, ELIZETH CARDOSO E MUITOS OUTROS.

4. JOÃO VALENTÃO: CONVIVÊNCIA DE OPOSTOS

Temos agora o samba João Valentão de Dorival Caymmi. É a primeira música cantada, é a primeira letra de canção que será interpretada. A canção explora diversas dicotomias. Começa como um samba forte e descreve o João Valentão, um típico machão briguento impulsivo. Em seguida a música torna-se lenta e o próprio personagem agora surge como uma mistura de ingenuidade, romantismo e lirismo. Ao invés de interpretarmos literalmente a letra da canção na coreografia, vamos explorar o que há de mais interessante, que é a suposição de que o manifesto expressa sempre o reprimido. O machão tem algo de homossexual.João Valentão é uma composição repleta de dualidades, presentes desde a própria estrutura da partitura. Começa como um samba rápido, e a letra descreve um João Valentão estúpido, agressivo, violento. Repentinamente, a música ralenta e passa a tratar do mesmo João só que agora ele torna-se terno, doce, amoroso, contemplador da natureza, cheio de amor pela morena. Caymmi é mestre nisso. Estamos nesse momento investigando um pouquinho do caráter brasileiro, nossa vertente esquizofrênica, ao mesmo tempo cordial e destrutiva. A segunda parte da canção é muito lânguida, e apesar de ser melodicamente simples, previsível, exige perspicácia interpretativa do cantor. Assim, será durante todo o espetáculo: estamos num período anterior à bossa nova, anterior ao cochicho confessional do banquinho e violão, do "barquinho que vai enquanto a tardinha cai"... Nossos intérpretes

estão ainda influenciados pelo teatro de revista, pelo canto não amplificado por microfones. E por nós mesmos estarmos dentro de um espetáculo teatral, devemos buscar o significado da interpretação de cada verso. ESTA É PROPOSITALMENTE A PRIMEIRA MÚSICA CANTADA DO ESPETÁCULO, ou seja, tem grande importância no roteiro. A afetividade da música brasileira está particularmente emaranhada com o canto. Sempre tivemos tradicionalmente a "rainha do rádio", o "cantor das multidões", vozes que viraram mito (Elis Regina morreu em 1982, e até hoje toda nova cantora que surge é comparada a ela!). Após a descrição "punk" da primeira parte de João Valentão, seguimos para um enlevo açucarado, temos que sentir a brisa suave de uma praia pouco habitada e a lerdeza ingênua e desarmada de personagens simples, pobres, decentes até o último fio de cabelo. É o momento de respirar essa brisa, descansar e maravilhar-se com a beleza da simplicidade.

JOÃO VALENTÃO (DORIVAL CAYMMI 1953)

JOÃO VALENTÃO É BRIGÃO

PRA DAR BOFETÃO

NÃO PRESTA ATENÇÃO

E NEM PENSA NA VIDA

A TODOS JOÃO INTIMIDA

FAZ COISA QUE ATÉ DEUS DUVIDA

MAS TEM SEU MOMENTO NA VIDA

É QUANDO O SOL VAI QUEBRANDO

LÁ PRO FIM DO MUNDO PRA NOITE CHEGAR

É QUANDO SE OUVE MAIS FORTE

O RONCO DAS ONDAS NA BEIRA DO MAR

É QUANDO O CANSAÇO DA LIDA DA VIDA

OBRIGA JOÃO SE SENTAR

É QUANDO A MORENA SE ENCOLHE

SE CHEGA PRO LADO QUERENDO AGRADAR

SE A NOITE É DE LUA

A VONTADE É CONTAR MENTIRA

É SE ESPREGUIÇAR

DEITAR NA AREIA DA PRAIA

QUE ACABA ONDE A VISTA NÃO PODE ALCANÇAR

ASSIM ADORMECE ESSE HOMEM

QUE NUNCA PRECISA DORMIR PRA SONHAR

PORQUE NÃO HÁ SONHO MAIS LINDO

DO QUE SUA TERRA, NÃO HÁ

(BIS)

DORIVAL CAYMMI (1914 - )

NASCIDO EM SALVADOR, BAHIA, DORIVAL CAYMMI É COMPOSITOR, INSTRUMENTISTA, CANTOR, POETA E PINTOR. APESAR DE NUNCA TER ESTUDADO MÚSICA, COMEÇOU A ESCREVER SUAS PRIMEIRAS COMPOSIÇÕES POR VOLTA DE 1930, JÁ ACOMPANHADO DO VIOLÃO. EM ABRIL DE 1938 MUDOU-SE PARA O RIO DE JANEIRO COM A INTENÇÃO DE TRABALHAR COMO JORNALISTA E ILUSTRADOR. CHEGOU A FAZER ALGUNS TRABALHOS PARA A REVISTA O CRUZEIRO, MAS LOGO ESTREOU NA RÁDIO TRANSMISSORA CANTANDO O SAMBA O QUE É QUE A BAIANA TEM?. NESSA ÉPOCA J. RUI ESTAVA REALIZANDO O FILME BANANA DA TERRA, QUE TERIA COMO TEMA A MÚSICA NA BAIXA DO SAPATEIRO DE ARI BARROSO, INTERPRETADA POR CARMEM MIRANDA. COMO O PRODUTOR DO FILME NÃO CONCORDOU COM O ALTO VALOR PEDIDO POR ARI BARROSO PARA A UTILIZAÇÃO DA MÚSICA, OFERECEU CEM MIL-RÉIS PARA DORIVAL CAYMMI

PARA INCLUIR O QUE É QUE A BAIANA TEM? NO FILME. EM 1939 CAYMMI ESTREAVA ATRAVÉS DA GRAVADORA ODEON GRAVANDO JUNTAMENTE COM CARMEM MIRANDA O QUE É QUE A BAIANA TEM?, QUE SE TRANSFORMARIA EM UM GRANDE SUCESSO NACIONAL. DAÍ PRA FRENTE MUITOS FORAM OS SUCESSOS. EM 1O. DE JANEIRO DE 1956 LANÇOU MARACANGALHA NA BOITE 36, NO RIO DE JANEIRO, QUE VIRIA A SE TORNAR MAIS UM GRANDE ÊXITO NO CARNAVAL. ATÉ HOJE DORIVAL CAYMMI CANTA O BRASIL, A BAHIA E SEU POVO COMO NENHUM OUTRO COMPOSITOR BRASILEIRO VIVO.

5.QUINDINS DE IAIÁ: HOLYWOOD E ATLANTIDA, O BRASIL CINEMATOGRÁFICO

Neste momento do espetáculo a introdução definitivamente acabou. Foram-se os sem-terra e os sem-teto da atualidade. Nas próximas duas canções revisitaremos o Brasil cinematográfico, alegre, exótico, que tem uma boa dose de "macumba para turista". Teremos duas canções do repertório de Carmem e Aurora Miranda, ambas tratam da Bahia e da baiana. Musicalmente, colocamos maracatu pernambucano em Quindins de Iaiá, alternando-o com seu ritmo original que é maxixe. Esse procedimento é adotado em várias canções do Baile Estelar, pois nossa pesquisa cria o diálogo profundo entre as tradições rítmicas e folclóricas da canção brasileira. Aqui, uma das personagens principais é uma alegoria de Carmem Miranda, ou seja, a alegoria da alegoria. Quando falamos de Brasil, jamais podemos desprezar o nosso espírito carnavalizante ou carnavalizador. Temos agora a música pulsante, repleta de imagens, cores e sensações enquanto que os personagens (bailarinos e cantores), desenvolvem diversas ações sociais/relacionais simultâneas. É a cena mais bagunçada do espetáculo, pois estão todos em cena, alternando dança contemporânea com gestual cotidiano. Os músicos da banda também se movimentam, os metais deslocam-se no palco.

A graciosa composição de Ari Barroso é cheia de vida. Todos querem os quindins de Iaiá, esse é um erotismo quase ingênuo. Iaiá é a personagem feminina, a quituteira baiana. Salvador, por ter sido a primeira capital brasileira e a cidade mais importante da colônia, até a chegada de D. João VI no Rio de Janeiro em 1808, era o que, em termos relativos havia de mais cosmopolita por aqui. Em diversos grupos africanos, havia a tradição da mulher comerciante (nesse sentido era muito mais liberal do que a sociedade européia do séc XVI). Algumas escravas que tinham o contato íntimo nas casas dos senhores, tinham a concessão de fazer um pequeno comércio para lucro próprio, e daí surgiram principalmente as lavadeiras e quituteiras. Essa "preta do acarajé", de turbante, colares e vestido de renda branca é exatamente essa personagem. Em Quindins de Iaiá já estamos tratando de miscigenação; um tanto machista: o senhor quer comer a escrava, há nessa atração sexual um fascínio preconceituoso que atribui à mulher negra uma sensualidade mais instintual, menos civilizada, mais selvagem. De qualquer maneira, temos a bela Iaiá caminhando malemolente, carregando o tabuleiro de quitutes, admirada e cortejada por todos os transeuntes. Essa cena foi eternizada no filme/desenho animado "Você já foi à Bahia?" de Walt Disney, realizado após a II Guerra. Havia nesse período o que se chamava de "política de boa vizinhança", uma preocupação imperialista de os EUA ter uma imagem de aliado e

amigo dos países da América Latina (já começava o medo da expansão comunista que mudou o mapa geopolítico do leste europeu). No filme de Walt Disney três aves passeiam pelo nosso continente: o brasileiro Zé Carioca, o ianque Pato Donald e um galo mexicano (não lembro o nome). Zé Carioca traz os amigos pra conhecer a Bahia e eles encontram Aurora Miranda (irmã de Carmem Miranda), no papel de Iaiá, dançando nas ruas, circundada pelos músicos do Bando da Lua (entre eles o notável Aluisio de Oliveira). A cena é simpática, mas tem aquele ranço brega/Hollywood imperialista: Iaiá é um monstro alegórico com frutas na cabeça e balança os braços numa coreografia inexistente no Brasil. Mas tudo bem. O nosso arranjo é bastante original e mistura o maxixe, que era uma dança de casais do Rio de Janeiro no séc XIX com o maracatu pernambucano. É uma liberdade nossa, pois no original o maxixe acontece do começo ao fim. Poucos ritmos na música brasileira são mais intensos que o maracatu. As alfaias são tambores de couro rústico com os pelos do animal. E a batida é irregular, cheia de contratempos surpreendentes por isso chega a ser mais violenta, complexa do que o samba. Toda parte final instrumental é maracatu.

OS QUINDINS DE IAIÁ (ARI BARROSO, 1941)

OS QUINDINS DE IAIÁ. COMÉ, COMÉ, COMÉ

OS QUINDINS DE IAIÁ. COMÉ, COMÉ, COMÉ

OS QUINDINS DE IAIÁ. COMÉ, COMÉ

COMÉ QUE FAZ CHORAR

E OS ZÓIM DE IAIÁ, COMÉ, COMÉ, COMÉ

E OS ZÓIM DE IAIÁ, COMÉ, COMÉ, COMÉ

E OS ZÓIM DE IAIÁ, COMÉ

COMÉ QUE FAZ PENAR

O JEITÃO DE IAIÁ, ME DÁ, ME DÁ

UMA COISA QUE É, QUE É

QUE EU NÃO SEI QUE É, QUE É

SE É OU NÃO AMOR

SÓ SEI QUE IAIÁ TEM UMAS COISA

QUE AS OUTRAS IAIÁ NÃO TEM

AH, O QUE É

OS ZÓIM DE IAIÁ

OS ZÓIM DE IAIÁ

OS ZÓIM DE IAIÁ

TEM TANTA COISA DE VALOR

NESSE MUNDO DE NOSSO SENHOR

TEM A FLOR DA MEIA NOITE

ESCONDIDA NOS CANTEIROS

TEM MÚSICA E BELEZA

NA VOZ DOS BOIADEIROS

A PRATA DA LUA CHEIA

O LEQUE DOS COQUEIROS

O SORRISO DAS CRIANÇAS

A TOADA DOS VAQUEIROS

JURO POR VIRGEM MAR

QUE NADA DISSO PODE MUDAR

AH O QUE É

OS QUINDINS DE IAIÁ

OS QUINDINS DE IAIÁ

OS QUINDINS DE IAIÁ

6.O QUE É QUE A BAIANA TEM?: SENSUALIDADE FEMININA

Agora, após o caos urbano e nostálgico de Quindins de Iaiá, da multidão brota uma personagem protagonista que é a baiana. Ela dança com diversos personagens masculinos afirmando sua sensualidade brejeira e liberdade. Relaciona-se com todos os personagens, brinca e passa por todos mas sempre se esquiva, não se deixa dominar por ninguém. Essa nossa baiana é uma Carmem "ligth", auto-determinada como boa parte das mulheres descendentes da cultura africana iorubá. A cena é antes de mais nada, graciosa e leve. A baiana reage aos instrumentos musicais e é provocada primeiramente pelo trumpete e depois pelo pandeiro. Esquiva-se sorridente de tudo e de todos.

O que é que a baiana tem? e Quindins de Iaiá são basicamente a mesma música: sensualidade metafórica, enumeração de itens indicativos de brasilidade dessa mulher descendente de escravos, repleta de um barroquismo afro-brasileiro. Aqui tentamos romper com Hollywood, não apenas com a Hollywood antiga dos anos 40, mas também com a linguagem dos modernos musicais de Bob Fosse. Devemos buscar a linguagem do corpo brasileiro.

O QUE É QUE A BAIANA TEM? (DORIVAL CAYMMI, 1938)

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

TEM TORÇO DE SEDA TEM

TEM BRINCO DE OURO TEM

CORRENTE DE OURO TEM

TEM PANO DA COSTA TEM, AH

TEM BATA RENDADA TEM

PULSEIRA DE OURO TEM

TEM SAIA ENGOMADA TEM

SANDÁLIA ENFEITADA TEM

TEM GRAÇA COMO NINGUÉM

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

TEM GRAÇA COMO NINGUÉM

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

QUANDO VOCÊ SE REQUEBRAR CAIA POR CIMA DE MIM

CAIA POR CIMA DE MIM

CAIA POR CIMA DE MIM

TEM TORÇO DE SEDA TEM

TEM BRINCO DE OURO TEM

CORRENTE DE OURO TEM

TEM PANO DA COSTA TEM, AH

TEM BATA RENDADA TEM

PULSEIRA DE OURO TEM

TEM SAIA ENGOMADA TEM

SANDÁLIA ENFEITADA TEM

SÓ VAI AO BONFIM QUEM TEM

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

SÓ VAI AO BONFIM QUEM TEM

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

UM ROSÁRIO DE OURO

UMA BOLOTA ASSIM

QUEM NÃO TEM BALANGANDÃS

NÃO VAI AO BONFIM

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

O QUE É QUE A BAIANA TEM?

CARMEN MIRANDA (1909-1955), PSEUDÔNIMO DE MARIA DO CARMO MIRANDA DA CUNHA, NASCEU EM PORTUGAL, NA ZONA RURAL DE MARCO DE CANAVEZES. VEIO PARA O BRASIL COM 18 MESES. CARMEN ESTUDOU ALGUNS ANOS NUM COLÉGIO DE FREIRAS, DEPOIS FOI TRABALHAR COMO BALCONISTA DE LOJAS DE ROUPAS FEMININAS E GRAVATAS. EM 1929, COM 20 ANOS, FOI LEVADA PELO VIOLONISTA E COMPOSITOR BAIANO JOSUÉ DE BARROS, SEU DESCOBRIDOR E PROTETOR, PARA GRAVAR. CARMEN EXPLODIU COMO CELEBRIDADE NO BRASIL. DAÍ EM DIANTE, SEUS ÊXITOS NUNCA CESSARAM

QUANDO CARMEN MIRANDA, EM 1939, CHEGOU AO PORTO DE NOVA IORQUE, ERA UMA ILUSTRE DESCONHECIDA DO PÚBLICO AMERICANO. BASTOU-LHE PORÉM UM MÊS PARA CONQUISTAR A FEIRA MUNDIAL, A BROADWAY E EXTRAORDINÁRIA POPULARIDADE. LOGO VEIO O CONVITE DO CINEMA.

O QUE NINGUÉM SABIA NA AMÉRICA É QUE CARMEN JÁ TINHA 10 ANOS DE CARREIRA NO BRASIL COMO CANTORA DE DISCO, DO RÁDIO E NO CINEMA, RECORDISTA ABSOLUTA DE VENDAGEM DE DISCOS E TAMBÉM A "EMBAIXATRIZ DO SAMBA. A IDA DE CARMEN AOS EUA, SE PROVOCOU O ORGULHO NACIONAL, TROUXE DEPOIS ALGUNS RESSENTIMENTOS NOS BRASILEIROS PELOS 14 ANOS CONSECUTIVOS DE SUA AUSÊNCIA DO BRASIL. TUDO ISSO PORÉM FOI ESQUECIDO QUANDO, AOS 46 ANOS, ELA FALECEU EM BEVERLY HILLS. UM MILHÃO DE PESSOAS CHORANDO E CANTANDO SUAS MÚSICAS ACOMPANHANDO SEU CORPO EMBALSAMADO NO RIO.

7.RANCHO FUNDO: MEMÓRIAS MELANCOLIAS

Aqui ocorre uma das mais radicais rupturas da estrutura narrativa do Baile Estelar. A cena de Rancho fundo é uma cena por si só mas é fundamentalmente uma transição entre o mundo diurno e alegórico de "Quindins de Iaiá" e "O que é que a Baiana Tem?" para um mergulho no inconsciente que acontecerá nas canções posteriores. Em "Quindins" tivemos o coletivo, em "O que é que a Baiana Tem?" tivemos o protagonista ativo; e agora teremos personagens que pouco atuam, que pouco fazem mas que evocam a memória. Para sairmos da brincadeira ingênua e para chegarmos em conteúdos reprimidos, o melhor caminho é a introspecção e essa é a função de Rancho fundo. Cai a luz, estabelece-se o silencio. Todos os presentes, públicos e artistas, por um momento, voltam-se para si mesmos num vazio que pode apontar para diversas direções. Uma bela mulher caminha pelo palco. Aproxima-se do foco de luz, entra no foco, sai do foco e desaparece. Ela é bela e tem movimentos econômicos. Dois músicos homens caminham a seu lado tocando a melancólica Rancho fundo, num dueto minimalista.

As melodias são vozes humanas dialogando confessionalmente. Os músicos relacionam-se intensa e intimamente através da música mas a mulher não reage, está em outro plano. Não existe mais realismo, mas memória. Aqui o passado não se confunde com o presente, o masculino e o feminino estão definidos e distantes um do outro. Aqui é sonho, não é realidade misturada com sonho. Após Rancho fundo, abrimos o caminho para o bloco central do espetáculo, que percorrerá de "torpor/transe/orgasmo/morte/renascimento".

Tristeza, melancolia, saudosismo. São essas as sensações que devemos invocar em todos nós, agora que propomos um mergulho na memória, na nossa memória pessoal e coletiva. Não há catástrofe, mas algo se perdeu. Esta perda é o mote do espetáculo, tudo o que vem depois é a busca de se reencontrar esta coisa que na verdade ninguém jamais saberá o que é. A música suave e triste cria este primeiro conflito. Buscaremos no transcorrer de tudo a exegese, o encontro da metade faltante, buscaremos a completude que nunca virá, afinal de contas a condição humana é eternamente incompleta e insatisfeita. Optamos por não celebrar a gratidão e a felicidade da vida, mas por propor uma ansiedade primordial, investigaremos os modos como ela se mundaniza no mundo, como ela se humaniza no homem, como essa falta nos move adiante na vida e em todos os sentidos no tempo. Essa falta tem a ver com a sexualidade, com a busca que o homem empreende para completar-se na mulher e no desejo da mulher de unir-se ao homem e tornar-se um. Com o homem, com a mulher, qualquer coisa... são infinitos os caminhos.

No nosso arranjo, usamos um dueto com ênfase na capacidade teatral do trumpete com surdina.. Os efeitos de surdinas foram muito utilizados nas bandas de jazz nos anos 20, e foram parte essencial na formação do Jungle Style por Duke Ellington nos anos do Cotton Club. Usando as mãos e as surdinas, trumpetes e trombones podem soar como onomatopéias de animais, vozes humanas com sentido dramático ou cômico. A introdução de Rancho Fundo, como toda canção é melancólica, e por estar pensada como um dueto, terá dupla função de chamar atenção/curiosidade do público e transcorrerá na verdade como um diálogo entre duas pessoas que se alternam em perguntas e respostas sentimentais. Ficará claro que estamos transportando o público para um outro lugar, para uma atmosfera

psicológica que merece ter uma disponibilização de atenção e sentimentos.

LAMARTINE BABO (10/01/1904 - 16/06/1963)

CONVIVEU COM A MÚSICA DESDE CRIANÇA, SUA MÃE E SUAS IRMÃS TOCAVAM PIANO E SUA CASA ERA BASTANTE FREQÜENTADA PELOS CHORÕES DA ÉPOCA. BEM-HUMORADO E COM MUITA FACILIDADE DE FAZER PIADAS, LAMARTINE É CONVIDADO A COLABORAR EM REVISTAS DA ÉPOCA, SEMPRE COM PSEUDÔNIMOS COMO FREI CANECA, POETA CINZENTO E JANEIRO RAMOS. EM 1929 PASSA A TRABALHAR EM RÁDIO, ONDE CANTAVA E CONTAVA PIADAS E UM ANO MAIS TARDE CRIA O PROGRAMA HORAS LAMARTINESCAS.

FEZ MUITO SUCESSO COM SUAS COMPOSIÇÕES CARNAVALESCAS E, A PARTIR DE 1937 PASSA A COMPOR SAMBAS-CANÇÕES. PRODUZIU VÁRIOS PROGRAMAS DE RADIO. EM 1963 CARLOS MACHADO PRODUZIU NO COPACABANA PALACE, NO RIO DE JANEIRO O SHOW "O TEU CABELO NÃO NEGA", BASEADO NA VIDA DE LAMARTINE BABO. ACOMPANHOU DE PERTO OS ENSAIOS MAS POUCOS DIAS ANTES DA ESTRÉIA MORREU DE ENFARTE.

8.PAU DE ARARA: TORPOR, PRENÚNCIO DA LOUCURA

Este talvez seja o momento mais arriscado do espetáculo. A ousadia reside em usar a celebre canção "Pau de Arara" para nos transportar para uma região psicológica alheia a realismos. "Pau de arara" tem algo de blues, é um blues seco, um lamento de retirante, hiper-realista. No baile estelar, no entanto, a canção nos desata definitivamente da cotidianeidade. A dança é angustiada ao extremo. A canção que embalou adolescentes nos bailes de forró agora é a portadora da loucura. O excesso de realidade migra para o torpor, o torpor individual que contagia a todos, para partirmos para um caos na inconsciência coletiva através da contaminação. É dessa energia que brota, por exemplo, o transe religioso coletivo e o estado mental de guerra ou de orgia sexual. É o torpor que pode ser conduzido, manipulado e desaguar em diversas manifestações. Cabe aqui uma metáfora com a moderna teoria matemática do caos. Uma torneira quase fechada pinga gotas a intervalos regulares, previsíveis, mensuráveis. Se abrirmos um pouquinho mais a torneira temos as gotas aleatórias. Se abrirmos ainda mais a torneira não existem mais gotas, mas um fluxo. Do "ponto de vista das gotas" temos o caos completo, pois as gotas estão perdidas na turbulência. O jorro de água que surge é turbulento mas tende a ser um fluxo estável. O "Pau de Arara" é essa mão sensível que aos poucos vai abrindo a torneira. Sabemos que há sensualidade na dança do forró, é uma dança de casais, corpo a corpo. Isso será desprezado, mas a característica de dança conectada ao chão, da herança indígena das dançar circulares de bater o pé no chão, será enfatizada subliminarmente. Agora estamos na terra em transe.

PAU DE ARARA (GUIO DE MORAES E LUIZ GONZAGA, 1952)

QUANDO EU VIM DO SERTÃO SEU MOÇO

DO MEU BODOCÓ

A MALOTA ERA UM SACO

E O CADEADO ERA UM NÓ

SÓ TRAZIA CORAGEM E A CARA

VIAJANDO NUM PAU DE ARARA

EU PENEI, MAS AQUI CHEGUEI

TROUXE O TRIANGULO

TROUXE O GONGUÊ

TROUXE O ZABUMBA

DENTRO DO MATULÊ

XOTE, MARACATU E BAIÃO

TUDO ISSO EU TROUXE NO MEU MATULÃO

LUIZ GONZAGA (13/12/1912 - 02/08/1989)

FILHO DE JANUÁRIO, UM SANFONEIRO QUE TOCAVA EM FESTAS E CONSERTAVA SANFONAS, LUIZ GONZAGA APRENDEU A TOCAR COM O PAI DESDE CEDO. MAS O SUCESSO SÓ VEIO EM 1941 QUANDO PARTICIPOU DO PROGRAMA DE CALOUROS DE ARI BARROSO. EM 1943 GRAVOU COMO CANTOR PELA PRIMEIRA VEZ A MÚSICA DANÇA, MARIQUINHA. DOIS ANOS DEPOIS INICIOU SUA PARCERIA COM HUMBERTO TEIXEIRA COM QUEM GRAVOU SEUS MAIORES SUCESSOS COMO BAIÃO, LANÇADO EM 1945 E ASA BRANCA EM 1947. NOS ANOS 50 COMEÇOU NOVA PARCERIA COM O PERNAMBUCANO ZÉ DANTAS, COM QUEM GRAVOU EM 1955 O XOTE RIACHO DO NAVIO. LUIZ GONZAGA, CONHECIDO COMO O REI DO BAIÃO, MOSTROU AO BRASIL, ATRAVÉS DE SUAS QUASE 600 COMPOSIÇÕES, A IMPORTÂNCIA E A GENIALIDADE DA MÚSICA NORDESTINA.

9.ACAUÃ: DISSOLUÇÃO DO EGO, ERUPÇÃO DO REPRIMIDO

Em Acauã intensifica-se o torpor realista de Pau de Arara, mas com algumas novas informações e energias. O arranjo de Dino Barioni é cinematográfico, imagético, a flauta e o clarinete fazem onomatopéias do canto lúgubre de um pássaro agourento. Descemos mais um andar rumo à inconsciência, e agora trazemos para o palco essa energia animal, instintual. Assim, abandonamos a razão e os personagens confundem-se com arquétipos distorcidos. Apesar da canção ser tipicamente brasileira, nesse momento já saímos do Brasil e da Terra. Emergem movimentos compulsivos, e há desespero no ar. Os figurinos tem frangalhos, prevalecem tonalidades de marrom, que nos remetem ao barro, à lama.

ACAUÃ (ZÉ DANTAS, 1952)

ACAUÃ, ACAUÃ VIVE CANTANDO

DURANTE O TEMPO DO VERÃO

NO SILÊNCIO DAS TARDES AGOURANDO

CHAMANDO A SECA PRO SERTÃO

CHAMANDO A SECA PRO SERTÃO

ACAUÃ,

ACAUÃ,

TEU CANTO É PENOSO E FAZ MEDO

TE CALA ACAUÃ,

QUE É PRA CHUVA VOLTAR CEDO

QUE É PRA CHUVA VOLTAR CEDO

TODA NOITE NO SERTÃO

CANTA O JOÃO CORTA-PAU

A CORUJA, MÃE DA LUA

A PEITICA E O BACURAU

NA ALEGRIA DO INVERNO

CANTA SAPO, GIA E RÃ

MAS NA TRISTEZA DA SECA

SÓ SE OUVE ACAUÃ

SÓ SE OUVE ACAUÃ

ACAUÃ, ACAUÃ

ZÉ DANTAS (17/2/1921 11/3/1962)

JOSÉ DE SOUZA DANTAS FILHO FOI UM COMPOSITOR, POETA E FOLCLORISTA FUNDAMENTAL PARA A FIXAÇÃO DO BAIÃO COMO GÊNERO DE SUCESSO. ISSO SE DEU GRAÇAS ÀS SUAS PARCERIAS COM LUIZ GONZAGA A PARTIR DE 1950. MAS EM 1938 ZÉ JÁ COMPUNHA SUAS PRIMEIRAS MÚSICAS E ESCREVIA CRÔNICAS SOBRE FOLCLORE PARA UMA REVISTA PERNAMBUCANA.

QUANDO FOI DIRETOR FOLCLÓRICO DA RÁDIO MAYRINK VEIGA, DO RIO, O COMPOSITOR CHEGOU A REGRAVAR SUAS CANÇÕES MAIS EMBLEMÁTICAS EM DISCO. MESMO DEPOIS DE SUA MORTE, TODAS AS MÚSICAS DA DUPLA CONTINUARAM A SER RELIDAS PELOS MAIORES NOMES DA MPB – ATÉ OS DIAS DE HOJE – COMO GAL COSTA, GILBERTO GIL, ELBA RAMALHO, ALCEU VALENÇA, FAGNER, MARISA MONTE E MUITOS GRUPOS DE OXENTE MUSIC E ATÉ DA GERAÇÃO DA MÚSICA ELETRÔNICA.

10.XAXARÁ: ORGANIZAÇÃO DO TRANSE COLETIVO

Xaxará é uma composição de Dino Barioni (nosso guitarrista e arranjador) sobre a base do ritmo opanijé, para Abaluaê; freqüente no ritual de candomblé brasileiro. A palavra xaxará refere-se à ferramenta utilizada pelo orixá pra varrer as enfermidades. É, portanto uma música de cura. Em todo o repertório do Baile Estelar, esta é a única concessão a uma música que não faz parte do período pré-bossa nova. No entanto, na minha concepção, ela é tão intensa ritmicamente que as melodias colocadas sobre o ritmo apenas o enfatizam, ou seja: o que vale é o caráter hipnótico da percussão que é tradicional, folclórica. Nesse opanijé os tambores tocados com agdavís (varetinhas de galhos de goiabeira), tornam-se o mote de toda cena. A canção é misteriosa, tem algo de sinistro e é ao mesmo tempo inclemente: nada parece poder afetar os tambores que soam sem trégua. Temos um mergulho na noite, no desconhecido, no inconsciente. Aqui o espetáculo deixa de ter qualquer vínculo com objetividade, agora é a vez do reprimido, do oculto, da sombra. Estamos assim tratando do desejo, os desejos primitivos que nem sabemos definir quais são. Não é apenas sexo, nem só a agressividade. Há algo aí do fascínio pela morte, do infantil, dos medos ancestrais. E este hemisfério soturno é muitas vezes habilmente ritualizado nos rituais tribais. Xaxará é uma música que respira, ela cresce de intensidade e

depois se ameniza, mas sem jamais perder a tensão e a densidade. Xaxará também não explode, mas parece sempre estar à beira desta erupção que não acontece.Isso é traduzido para o corpo. Xaxará é uma conspiração, a trama de um crime indefinido que ninguém sabe exatamente qual é. Será um assassinato? Um estupro? Uma revolução? A aproximação do demônio? Ninguém sabe nem deve saber, pois a resposta define o fim do mistério e não é isso que pretendemos.

COMPOSTA SOBRE O RITMO OPANIJÉ, PARA OBALUAÊ. SEU NOME, XAXARÁ, REFERE-SE À "FERRAMENTA" UTILIZADA PELO ORIXÁ PARA VARRER AS ENFERMIDADES. OS MÚSICOS DINO BARIONI (COMPOSITOR, VIOLONISTA E ARRANJADOR) E O PERCUSSIONISTA ARI COLARES, CRIARAM ESSAS MELODIAS SOBRE O RITMO DO CANDOMBLÉ PARA GRAVAÇÃO DO ÁLBUM "AGO: CANTOS SAGRADOS DE BRASIL E CUBA", LANÇADAS PELO SELO SAMBATÁ, EM 2003.

11.CHORO 7: TRANSE, ORGASMO E MORTE

O Choro 7 de alguma maneira opõe-se ao Xaxará. Como boa peça de Villa Lobos, é colorida, exuberante e confusa. Nossa adaptação oscila entre o rigor e a liberdade, pois apesar de diversos temas originais estarem preservados, por vezes escapamos de alguns de seus labirintos sonoros. Muita coisa do Villa Lobos tem essa peculiaridade incômoda, bagunçada, em que as idéias não ficam claras. Entretanto, lá estão os motivos regionais, o choro carioca da segunda metade do séc XIX e a influência arrasadora dos compositores do séc XX (particularmente Stravinsky). O original foi escrito para orquestra de câmara e não tinha sequer percussão. Nossa liberdade foi arremessar esta partitura cerrada em si mesma no ritmo 12 por 8, o barravento do candomblé. Temos aqui a canção mais complexa do repertório, na verdade uma loucura, uma briga, uma quebra entre o racional e o primitivo (isso parece meio chavão, mas não está fora de contexto). Alguns temas são melódicos, mas estão jogados no meio de atonalismos, jamais repousam no chão como é característica de toda música folclórica. O folclore é o homem agarrado à sua terra, e nesse Choro 7 essa terra está em convulsão, é um terremoto. Os metais aproximam-se e desaparecem, propõem mundos que não se concretizam. Se Xaxará era o mistério, Choro 7 é a erupção do conflito. A crise que estava represada eclode. E a crise, são várias crises; aí cabe tudo o que nós quisermos.

Na segunda parte da canção temos um relaxamento gracioso. Colocamos ali um tambor malandro de samba de roda, quase ingênuo, e os instrumentos desenham-se com extrema auto-afirmação. O trumpete faz a melodia, o trombone assume que é mesmo um instrumento muito grave e o sax alto demonstra sua agilidade e passeia por notas rápidas como o bater das asas de uma libélula. Ali temos o otimismo. Não dura muito, logo dá lugar ao final solene, quase marcial. Choro 7 é quase todo ele um solo de contrabaixo jazzístico e atormentado. Esse solo é compreendido e dançado. A percussão pira e o piano é livre, mas quem varia de fato é o contrabaixo. Na nossa curva dramática isso faz sentido: o contrabaixo dá as notas graves da banda, é a base, é o chão para todos os outros músicos. Esse chão vai tremer nessa ocasião única do espetáculo. As freqüências graves vão ondular e isso reflete no corpo. No Choro 7 há crise e também torpor.. Estamos no auge da excitação, e nesse sentido a parábola com o ato sexual é apropriada. Estamos no meio do sexo bêbado, no vai e vem primitivo, no prazer e dor. Acontece o orgasmo metafórico. Ao fim da canção todos morrem, tudo silencia.

HEITOR VILLA-LOBOS (05/03/1887 – 17/11/1959)

DESDE PEQUENO TOCAVA EM RODAS E CONJUNTOS INSTRUMENTAIS POPULARES, OS CHAMADOS CHOROS. EM 1900 COMEÇA A COMPOR UMA SÉRIE DE PECINHAS DE GOSTO TAMBÉM POPULAR. EM BREVE GANHAVA A SUA VIDA COMO VIOLONCELISTA, TOCANDO EM CINEMAS, TEATROS E CAFÉS. DOS 18 AOS 20 ANOS LEVA UMA VIDA ERRANTE E AVENTUROSA ATRAVÉS DO BRASIL, VISITANDO O NORTE, O CENTRO E O SUL DO PAÍS, TOCANDO, COMPONDO FAMILIARIZANDO-SE COM A MÚSICA POPULAR E RECOLHENDO NESSAS PEREGRINAÇÕES IMPRESSÕES QUE VÃO ÀS SUAS FUTURAS OBRAS. EM 1913 ABANDONARA A VIDA ERRANTE E FIXA-SE NO RIO. CONTINUA A COMPOR ABUNDANTEMENTE EM TODOS OS GÊNEROS: MÚSICA SACRA, MÚSICA TEATRAL, MÚSICA SOLÍSTICA, MUSICA. EM 1915 REALIZA O PRIMEIRO CONCERTO DE OBRAS SUAS. INICIANDO DE CERTO MODO O MODERNISMO MUSICAL BRASILEIRO. EM 1922 A FAMOSA SEMANA DA ARTE MODERNA DE SÃO PAULO CONSAGRA O NOME DO COMPOSITOR. EM 1927 PARTE PARA A EUROPA. ATÉ 1930 VIVE EM PARIS. DE REGRESSO AO BRASIL, VILLA-LOBOS INICIA UM PERÍODO DE GRANDE ATIVIDADE. TORNADO DE CERTO MODO MÚSICO OFICIAL DO BRASIL, VILLA-LOBOS FUNDA EM 1945 A ACADEMIA BRASILEIRA DE MÚSICA, DE QUE É NOMEADO PRESIDENTE, E PASSA A FAZER REGULARMENTE VIAGENS AO ESTRANGEIRO.

12.OXAGUIAN: RESSURREIÇÃO

Estamos completando o ciclo torpor/transe/morte e renascimento. No fim de Choro 7 temos a morte pelo orgasmo, as mulheres caem mortas, exaustas após as danças circulares semelhantes à feitiçaria. Agora precisamos ressuscitar e quem nos traz de volta a vida é um

orixá. Não é um orixá específico, ele não tem nome, e carrega um gigantesco cacau sobre a cabeça. Esse cacau não tem precedentes na tradição afro-religiosa mas tem a ver com alimentos e frutas freqüentes no candomblé. Desse orixá surge a energia da vida e a idéia de um caminho. Mas ainda estamos desconectados da Terra, num plano espiritualizado. Até que todos os bailarinos recebem um objeto que é uma mistura de berimbau, cajado e bengala. Temos então movimentos de trabalho que sugerem o ato de mexer a comida dentro de um caldeirão ou remar um grande barco. Na parte final da canção todos, ao mesmo tempo batem o cajado no chão e levantam-se. A luz pisca como um relâmpago. A luz é um relâmpago, ou seja, uma conexão incrivelmente forte da natureza que junta o céu e a Terra. Nesse bater de cajado está refeita a conexão da vida, nesse momento voltamos para a Terra e está finalizado o grande ciclo simbólico iniciado com Pau de Arara. O próximo momento será intermediário, de retorno às sensações vitais. Essa canção contém dois cantos para Oxaguian, o Oxalá Menino, no ritmo ijexá. E agora ressurge o tambor. O coração volta a bater e a vida renasce. Alguns ritmos são muito repicados e acontecem nos contratempos. Essas batidas tendem a levar nosso corpo para saltos, acrobacias e contorções. O ijexá é justamente o contrário: coincide sempre com o tempo, reafirma o tempo, o chão, a terra. A dança é muito bonita, e os braços batem lentamente como asas, mas não asas que voam mas asas que conferem esse espaço de ar entre o corpo e o chão. As asas batem para baixo e não para cima. Esta é a melodia mais doce e graciosa do repertório, subentende-se o ninar de um bebê, quando temos ao mesmo tempo cuidado, carinho incondicional. Não podemos nos agitar, pois isso acorda o bebê e ele chora, essa é a última coisa que queremos. Não devemos assustar a criança, mas tranqüilizá-la com delicadeza e com firmeza. Sem firmeza a criança não se sente segura e então esse falso ninar torna-se incompetente. Esta sensação de que alguém zela por nós é uma das mais primitivas categorias da religião e confunde-se com o sentimento de gratidão. Somos gratos a essa entidade que supre o nosso desamparo. Oxaguian é isso, um canto africano que não entendemos a letra, onde a vida ressuscita, onde algo nasce e onde nos sentimos gratos pelo reinicio do ciclo. Estamos falando de algo felizmente uno ainda indiferenciado, não há aí ainda o macho e a fêmea, mas apenas uma possibilidade e essa possibilidade contém em si um grande mistério. Quando seguramos um

bebê numa maternidade pensamos: será um grande ser humano, será bom, será um canalha, tornar-se-á um assassino, um cientista? Não sabemos, ninguém sabe. E essa nova pulsação além da gratidão do mistério que não é cíclico, que não é evidente em si mesmo, que é uma incumbência, que é um processo de desvelamento, que é tirar o véu e ver o que está sempre a nossa frente, porém necessitando de alguém que o enxergue para desabrochar. Aqui encerra-se o ciclo abstrato e a partir de agora o espetáculo toma um outro rumo distinto.

13.CHÃO DE ESTRELAS: O LÍRICO

Chão de estrelas não é uma música romântica. Chão de estrelas é um hino lírico. Uma obra prima composicional que usa as mais ricas metáforas daquele período da música popular brasileira. Aqui não há coreografia, a ênfase está totalmente concentrada na voz que canta a letra sofisticada e o violão. Aqui suprimimos o arranjo da orquestra e o cantor no alto do balcão dialoga com o violão no mais puro clima de seresta ao luar. Esse é um canto cujo homenageado não é a musa, não é o amor perdido, mas o céu estrelado. Nesse sentido, é um enlevo galileano. As notas delicadas do vibrafone representam gotas de luz de estrelas que polvilham o chão do barraco simples. O acordeon surge no fim da canção reforçando o sentimentalismo de toda a atmosfera. As bailarinas passam pelo palco quase sem luz, uma por uma, solitárias, na sua beleza em estado puro, pré-sensual. É a beleza na pobreza, preciosa na simplicidade, na intenção exata da canção.

CHÃO DE ESTRELAS (SILVIO CALDAS E ORESTES BARBOSA, 1937)

MINHA VIDA ERA UM PALCO ILUMINADO

EU VIVIA VESTIDO DE DOURADO

PALHAÇO DAS PERDIDAS ILUSÕES

CHEIO DOS GUIZOS FALSOS DA ALEGRIA

ANDEI CANTANDO A MINHA FANTASIA

ENTRE AS PALMAS FEBRIS DOS CORAÇÕES

MEU BARRACÃO NO MORRO DO SALGUEIRO

TINHA O CANTAR ALEGRE DE UM VIVEIRO

FOSTE A SONORIDADE QUE ACABOU

E HOJE, QUANDO DO SOL, A CLARIDADE

FORRA O MEU BARRACÃO, SINTO SAUDADE

DA MULHER POMBA-ROLA QUE VOOU

NOSSAS ROUPAS COMUNS DEPENDURADAS

NA JANELA QUAL BANDEIRAS AGITADAS

PARECIAM UM ESTRANHO FESTIVAL

FESTA DOS NOSSOS TRAPOS COLORIDOS

A MOSTRAR QUE NOS MORROS MAL VESTIDOS

É SEMPRE FERIADO NACIONAL

A PORTA DO BARRACO ERA SEM TRINCO

MAS A LUA FURANDO NOSSO ZINCO

SALPICAVA DE ESTRELAS NOSSO CHÃO

TU PISAVAS NOS ASTROS DISTRAÍDA

SEM SABER QUE A VENTURA DESTA VIDA

É A CABROCHA, O LUAR E O VIOLÃO.

SÍLVIO CALDAS (23/5/1908 - 3/2/1998).

CANTOR, COMPOSITOR, VIOLONISTA E ATOR. INICIOU SUA VIDA PROFISSIONAL AOS 9 ANOS COMO APRENDIZ DE MECÂNICO. TAMBÉM FOI LAVADOR DE CARROS, CHOFER DE TÁXI, DE CAMINHÃO E PARTICULAR, ESTIVADOR, GARIMPEIRO, E TEVE COMO "HOBBY" A PESCARIA E A CULINÁRIA. EM 1924 MUDOU-SE PARA SÃO PAULO AINDA TRABALHANDO EM OFICINAS MECÂNICAS ATÉ 1927, QUANDO RETORNOU AO RIO.POR ESTA OCASIÃO, ATRAVÉS DO CANTOR DE TANGOS ANTÔNIO GOMES, O "MILONGUITA", APRESENTOU-SE PELA PRIMEIRA VEZ NA RÁDIO MAYRINK VEIGA. DAÍ PRA FRENTE, CANTOU PRATICAMENTE EM TODAS AS RÁDIOS DO RIO DE JANEIRO. SEU PRIMEIRO DISCO COMERCIAL DEU-SE EM 1930 NA VICTOR. OS APELIDOS QUE GANHOU EM SUA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA FORAM "ROUXINOL DA FAMÍLIA IDEAL", "O CANTOR QUE VALORIZA AS PALAVRAS", "SILVINHO", "POETA. A PARTIR DE 1954 PASSOU A GRAVAR PELA COLUMBIA. COM O SURGIMENTO DA BOSSA-NOVA E A EVOLUÇÃO DOS ESTÚDIOS DE GRAVAÇÃO, OS VOZEIRÕES COMO O DE SÍLVIO CALDAS PERDERAM ESPAÇO NA MÍDIA. NOSSO "TITIO" CASOU-SE DUAS VEZES, TENDO UMA FILHA, SILVINHA, COM A PRIMEIRA MULHER, E SILVIO CALDAS FILHO, COM A SEGUNDA. EM 1965 MUDOU-SE PARA UM SÍTIO EM ATIBAIA, INTERIOR DE SÃO PAULO, A 65 KM DA CAPITAL, ONDE VIVEU ATÉ SEU ÚLTIMO DIA. NESTA CIDADE OCUPOU-SE COMO AGRICULTOR. DONO DE UMA SAÚDE EXTRAORDINÁRIA, SÍLVIO CALDAS FOI O CANTOR DE MAIS LONGA ATIVIDADE NA MPB. INFELIZMENTE, NO SEU ÚLTIMO ANO DA VIDA, O CANTOR SOFREU CRISES DE DEPRESSÃO E ANOREXIA, FALECENDO POR INSUFICIÊNCIA CARDIORRESPIRATÓRIA.

ORESTES BARBOSA (7/5/1893 - 15/8/1966)

COMPOSITOR, LETRISTA, JORNALISTA E ESCRITOR CARIOCA, APRENDEU A TOCAR VIOLÃO AINDA NA INFÂNCIA. MAIS TARDE TRABALHOU EM REDAÇÕES DE DIVERSOS JORNAIS DO RIO DE JANEIRO. COMO JORNALISTA, MILITOU POLITICAMENTE ATRAVÉS DE SEUS ARTIGOS, TENDO SIDO PRESO POR ESSE MOTIVO ALGUMAS VEZES. ESCREVEU LIVROS DE POESIA E PROSA ANTES DE FAZER SUAS PRIMEIRAS LETRAS PARA MÚSICA. SEU MAIOR SUCESSO, "CHÃO DE ESTRELAS", É CONSIDERADO UM DOS HINOS DA MPB.

14.CURARE: O RENASCIMENTO DA SENSUALIDADE INGÊNUA

Curare está no baile estelar porque é uma linda canção. Esse samba-choro de Bororó tem uma linda e surpreendente melodia. E a letra, belas imagens sensuais, brasileiras e mestiças. Aqui, o cantor surge como um malandro carioca dos anos 20 e 30, na linhagem de Madame Satã. A dança é um solo feminino que mescla gestos de balé contemporâneo e movimentos cotidianos. A sensualidade desta dança é brejeira, adolescente, é sugerido uma sedução ainda muito ingênua. Ali, uma menina que começa a virar mulher expressa-se como uma sonhadora que começa a antever seu futuro de plenitude. O ritmo do arranjo é abolerado e marca a importante influência dos ritmos latinos na história da música popular brasileira. Afinal de contas o samba canção é um descendente direto, tanto nas letras quanto nas melodias do bolero sentimental. Se ouvirmos o repertório de Maysa e Lupicinio Rodrigues teremos muitas evidências desse parentesco. Mesmo a bossa nova, teve grande influência do beguine. O primeiro álbum da bossa nova de João Gilberto, continha de um lado Chega de saudade e no lado B o beguine Obalalá (ou seria Bim bom?).

CURARE (BORORÓ, 1940)

VOCÊ TEM BONITEZA

E A NATUREZA

FOI QUE AGIU

COMO ESSES ÓIO DE INDIA

CURARE NO CORPO QUE É BEM BRASIL

TU ÉS TODA BAHIA

É A FLOR DO MOCAMBO

DA GENTE DE COR

FAZ DO AMOR CONFUSAO

NUMA MISTURAÇÃO

VEM BANZEIRA IZONEIRA

QUE TEM RAÇA E TRADIÇÃO

QUEBRA MACHUCA

MINHA DOR

NEGA NEGUINHA

TUDO TUDINHO

MEU AMORZINHO

COM ESSA BOQUINHA

VERMELHINHA RASGADINHA

QUE TEM VENENO COMO O QUE

CONTA TRISTEZA E ALEGRIA PRO SEU BEM

TUDO O QUE QUER DIZER

QUE VOCÊ É DIFERENTE

DESSA GENTE QUE FINGE QUERER

BORORÓ (ALBERTO DE CASTRO SIMÕES DA SILVA 15/10/1898 – 7/6/1986)

COMPOSITOR E INSTRUMENTISTA, NASCEU NO, NO BAIRRO DO BOTAFOGO ONDE APRENDEU A TOCAR VIOLÃO COM SEU. GANHOU O APELIDO QUANDO FAZIA O PRIMÁRIO NO COLÉGIO SANTO INÁCIO: NESSA OCASIÃO, UM GRUPO DE ÍNDIOS BORORO VISITOU SUA CASA E, ASSIM QUE O PROFESSOR SOUBE, PASSOU A CHAMÁ-LO DE BORORÓ. AOS 18 ANOS JÁ FAZIA APRESENTAÇÕES COMO VIOLINISTA.

POR VOLTA DE 1920 COMEÇOU SUA CARREIRA DE COMPOSITOR, FAZENDO MÚSICAS PARA RANCHOS CARNAVALESCOS. EM 1939 OBTEVE SUCESSO COM SUA PRIMEIRA COMPOSIÇÃO GRAVADA - DA COR DO PECADO -, NA VOZ DE SÍLVIO CALDAS. EM 1940 ORLANDO SILVA LANÇOU PELA VICTOR SEU CHORO CURARE, QUE SE TORNOU CLÁSSICO NO REPERTÓRIO DO CANTOR.

15.MORENA BOCA DE OURO: FESTA NA GAFIEIRA

Desse momento do espetáculo em diante temos a grande festa. No ambiente de gafieira recuperamos a alegria e o bom humor. O arranjo de Morena Boca de Ouro é exuberante, cheio de metais. A primeira parte da coreografia é protagonizada por um casal cômico. Ela é grande e desajeitada mas dança samba muito bem. Ele é pequeno e sua movimentação beira o grotesco. A coreografia homenageia Jackson do Pandeiro e sua parceira Almira que brincavam, em suas apresentações com esses contrastes. Essa primeira parte da coreografia tem algo de circense, e a influência do circo na criação e divulgação da musica popular brasileira é fundamental. Nos circos aconteciam apresentações musicais itinerantes e são diversos os palhaços cantores na primeira metade do séc XX. No final dos anos 90, tivemos o fenômeno do palhaço Tiririca com sua música Florentina. Esse sucesso estrondoso é a primeira vista inexplicável, mas tem, na verdade, raízes históricas profundas. Na segunda parte da coreografia a música ao vivo é substituída por uma gravação e os músicos surpreendem o público ao invadirem a pista para dançar. Este momento tem sua magia peculiar. É o objetivo do baile estelar integrar todo o elenco em funções diversas.

MORENA BOCA DE OURO (ARY BARROSO, 1941)

MORENA BOCA DE OURO QUE ME FAZ SOFRER

O TEU JEITINHO É QUE ME MATA

RODA MORENA, CAI NÃO CAI

GINGA MORENA, VAI NÃO VAI

SAMBA, MORENA, QUE DESACATA

MORENA UMA BRASA VIVA PRONTA PRA QUEIMAR

QUEIMANDO A GENTE SEM CLEMÊNCIA

RODA MORENA, CAI NÃO CAI

GINGA MORENA, VAI NÃO VAI

SAMBA MORENA, COM MALEMOLÊNCIA

MEU CORAÇÃO É UM PANDEIRO

MARCANDO O COMPASSO DE UM SAMBA FEITICEIRO

SAMBA QUE MEXE COM A GENTE

SAMBA QUE ZOMBA DA GENTE

O AMOR É UM SAMBA TÃO DIFERENTE

MORENA SAMBA NO TERREIRO

PISANDO SESTROSA, VAIDOSA

MEU CORAÇÃO, MORENA, TEM PENA

DE MAIS UM SOFREDOR QUE SE QUEIMOU

NA BRASA VIVA DO TEU AMOR

16.PISTON DE GAFIEIRA: MALANDRAGEM E HUMOR

Como o nome da canção sugere, mergulhamos escancaradamente numa animada gafieira carioca dos anos 40 e 50. Os personagens dançam, fumam, bebem e paqueram. A coreografia corresponde ao senso de humor da música e um casal exótico, pela segunda vez no espetáculo, dança de forma ridícula. Saímos do sonho, voltamos para o "realismo". Evidentemente não é um realismo realista, mas agora vamos fazer um baile democrático Finalmente nosso Baile Estelar vira um baile, escolhemos uma canção cômica e inteligente que, de cara nos ensina os estatutos de funcionamento da gafieira e nos coloca de maneira muito visual e dramática os personagens dessa peça. Escolhemos um samba de breque que ficou famoso na voz de Moreira da Silva, o bom malandro, o malandro quase ingênuo dos anos 30 e 40, muito bem captada por Walt Disney quando criou o personagem Zé Carioca. Esta malandragem das primeiras cidades que crescem e começam a acumular excedentes de mão de obra, a escravidão acabou a poucas décadas, e este novo homem mestiço, desarticulado politicamente se comparado com o operário sindicalizado europeu do mesmo período, sobrevive de pequenos trabalhos e da astúcia característica de sua situação intermediária: não é burguês mas não é escravo, é perseguido pela lei mas não é criminoso, é pobre mas diverte-se na grande cidade, e vive num relaxamento moral se comparado com a alta burguesia ainda ligada a padrões vitorianos do séc XIX. O malandro é um revoltado; havia ainda a repressão da ditadura Vargas, e esses comportamentos foram uma das poucas manifestações de rebeldia civil alienada. Não é uma malandragem ameaçadora, nada de assassinato, assalto a mão armada; mas agora trazemos a malícia, o duplo sentido. Piston de gafieira é um samba choro num andamento médio que convida as pessoas a dançar sem malabarismos e conta a história dos freqüentadores, da mulher bonita e sensual, da orquestra e da polícia. Na malandragem existe o jeitinho, tudo é relativizado. Nada é sério, as coisas tornam-se cômicas, pois ao mesmo tempo são e não são. O malandro é um sedutor atraente: ao nos aproximarmos dele sabemos que suas intenções não são totalmente boas, mas ele é charmoso quase inofensivo e tem uma grande vantagem em relação ao burguês: ele sabe como a vida é, não vive numa redoma social. Esses personagens nesse instante invadem a cena. O malandro é cômico e diverte-se com o cidadão comum, precisa fazê-lo de otário para afirmar a superioridade de seu modo de vida marginal, para que sua vida não seja desprovida de sentido.

PISTON DE GAFIEIRA (BILLY BLANCO, 1958)

NA GAFIEIRA SEGUE O BAILE CALMAMENTE

COM MUITA GENTE DANDO VOLTAS NO SALÃO

TUDO VAI BEM MAS HEIS PORÉM QUE DERREPENTE

UM PÉ SUBIU E ALGUÉM DE CARA FOI AO CHÃO

NÃO É QUE O DOCA, UM CRIOLO COMPORTADO

FICOU TARADO QUANDO VIU A DAGMAR

TODA SOLTINHA DENTRO DE UM VESTIDO SACO

TENDO AO LADO UM CARA FRACO

FOI TIRA-LA PRA DANÇAR

O MOÇO ERA FAIXA-PRETA SIMPLESMENTE

E FEZ O DOCA REBOLAR SEM BAMBOLÊ

E A PORTA FICA NESSE VAI NÃO VAI

QUEM ESTÁ FORA NÃO ENTRA

QUEM ESTÁ DENTRO NÃO SAI

E A ORQUESTRA SEMPRE TOMA PROVIDÊNCIA

TOCANDO ALTO PRA POLICIA NÃO MANJAR

E FINALMENTE COMO PARTE DA ROTINA

O PISTÃO TIRA A SURDINA E PÕE AS COISAS NO LUGAR

BILLY BLANCO (8/05/1924- )

QUANDO AINDA CURSAVA O GINÁSIO, COMEÇOU A APRENDER VIOLÃO. TRANSFERIU-SE PARA O RIO DE JANEIRO RJ EM 1948, MATRICULANDO-SE NA FACULDADE DE ARQUITETURA DA UNIVERSIDADE DO BRASIL, ONDE TERMINOU SEU CURSO. A PARTIR DE 1953, SUA CARREIRA DE COMPOSITOR SE FIRMOU COM GRAVAÇÕES DE DIVERSOS SAMBAS SEUS, ENTRE OS QUAIS ESTATUTO DA GAFIEIRA, GRAVADO EM 1953 NA VICTOR POR INESITA BARROSO. NO ANO DE 1959, MARCANDO O AUGE DE SUA CARREIRA COMO COMPOSITOR FORAM GRAVADAS A BANCA DO DESTINO, POR ISAURA GARCIA, NA ODEON; PISTON DE GAFIEIRA, POR SILVIO CALDAS, NACBS; CAMELÔ, POR DOLORES DURÁN, NA COPACABANA; E FOI CONVIDADO PRA GRAVAR SEUS PRÓPRIOS SAMBAS, PELA ELENCO, COM ARRANJOS DE OSCAR CASTRO NEVES. EM 1974, ESCREVEU AS MÚSICAS DA SINFONIA DE SÃO PAULO, GRAVADA NA MARCA EVENTO.

MOREIRA DA SILVA (1/04/1902- 6/06/2000)

CARIOCA E FILHO DE PAI MÚSICO (TROMBONISTA DA POLÍCIA MILITAR) ABANDONAR A ESCOLA PARA TRABALHAR MUITO CEDO. FOI EMPREGADO DE FÁBRICAS, TECELAGENS E CHOFER DE PRAÇA E DE AMBULÂNCIA, AO MESMO TEMPO EM QUE FREQÜENTAVA RODAS DE MALANDROS E BOÊMIA. A ESTRÉIA COMO CANTOR FOI EM 1931, QUANDO GRAVOU DOIS PONTOS DE MACUMBA ("ERERÊ" E "REI DA UMBANDA") NA ODEON. A PARTIR DAÍ ENTROU NO MEIO DO RÁDIO, FEZ AMIZADES E PROSSEGUIU GRAVANDO OUTROS DISCOS E TRABALHANDO EM CASSINOS E RÁDIOS. COM A FAMA DE MALANDRO, PASSOU A INTERPRETAR UM PERSONAGENS NOS ENREDOS DE SEUS SAMBAS DE BREQUE, O KID MORENGUEIRA, PRESENTE NO ENORME SUCESSO "O REI DO GATILHO" (MIGUEL GUSTAVO), QUE ORIGINOU UMA SÉRIE DE SAMBAS DO MESMO AUTOR QUE ELE GRAVOU DENTRO DO TEMA CINEMATOGRÁFICO. LANÇOU VÁRIOS DISCOS AO LONGO DE SUA CARREIRA, FOI ENREDO DA ESCOLA DE SAMBA UNIDOS DE MANGUINHOS EM 1992 E EM 1996 VIROU TEMA DE LIVRO COM O LANÇAMENTO DE "MOREIRA DA SILVA - O ÚLTIMO DOS MALANDROS", DE ALEXANDRE AUGUSTO.

17.ORORA ANALFABETA: ALEGRIA COLETIVA

Em Orora analfabeta há um prosseguimento orgânico do clima festivo de pistom de gafieira, agora com maior intensidade e o desempenho coreográfico coletivo conduz á euforia de uma festa que atinge seu auge.

ORORA ANALFABETA (GORDURINHA - NASCIMENTO GOMES, 1959)

EU ARRANJEI LÁ UMA DONA BOA LÁ EM CASCADURA

GRANDE CRIATURA MAS NÃO SABE LER

NEM TAMPOUCO ESCREVER

ELA É BONITA, BEM FEITA DE CORPO

E CHEIA DA NOTA

MAS ESCREVE GATO COM "J"

E ESCREVE SAUDADE COM "C"

ELA DISSE OUTRO DIA QUE ESTAVA DOENTE

SOFRENDO DE ESTROMBO

LAVEI UM TOMBO...CAÍ DURINHO PARA TRÁS

ISSO SIM JÁ E DEMAIS!

ELA FALA "ARIBÚ", "ARIOPRANO" E "MOTOCICRETA"

DIZ QUE ADORA FEIJOADA "COMPRETA"

ELA É ERRADA DEMAIS

VI UMA LETRA "O" BORDADA NA BLUSA

FALEI É AGORA

PERGUNTEI O SEU NOME

ELA DISSE É "ORORA"

E SOU FILHA DO "ARINEU"

O AZAR É TODO MEU...

GORDURINHA (WALDECK ARTUR DE MACEDO, 10/08/1922-16/01/1969)

NASCIDO NO BAIRRO DA SAÚDE, EM SALVADOR, NO DIA 10 DE AGOSTO DE 1922, SUA ESTRÉIA NO MUNDO DA MÚSICA SE DEU EM 1938, QUANDO FEZ PARTE DO CONJUNTO VOCAL "CAÍDOS DO CÉU". LOGO SE DESTACOU PELO SEU DOM DE HUMORISTA E PELO SARCASMO QUE IRIA SER DISSEMINADO EM SUAS LETRAS ANOS MAIS TARDE. EM 1942, CAIU NA ESTRADA, MAMBEMBEANDO E POVOANDO DE MÚSICA E PANTOMIMAS OUTRAS PLAGAS. SEU PRÓXIMO PASSO SERIA UM CONTRATO NA RÁDIO JORNAL DE COMÉRCIO, EM RECIFE, EM 1951. DEPOIS, O JOVEM COMPOSITOR, HUMORISTA E INTÉRPRETE GORDURINHA PASSARIA PELA RÁDIO TAMANDARÉ, EM 1952 PARTIU PARA O RIO DE JANEIRO. TRABALHOU NOS PROGRAMAS DA RÁDIO NACIONAL E TUPI, DUAS DAS MAIORES DO PAÍS, SEMPRE FAZENDO TIPOS HUMORÍSTICOS.

18.SAMBAS DE RODA: HUMOR, MALÍCIA E FOLCLORE

Está encerrada a festa de orquestra com funções definidas (músicos, bailarinos, etc) e vamos para o folclore, das manifestações tradicionais com tambores, palmas e vozes. Nessas festas os personagens emergem do povo e podem ser anônimos. Raramente são artistas profissionais. Esses coros de samba de roda revelam a capacidade cômica e de improvisação sempre presentes na cultura brasileira. Os trocadilhos as vezes ingênuos, as vezes grosseiros são sempre metáforas sexuais chulas. As provocações em forma de insinuação de ofensas homossexuais é algo sempre presente no caráter macunaímico, pervertido da cultura. O Brasil é um país machista mas que realiza o "Gala Gay", onde encontramos homossexuais de todo mundo e celebridades hetero como Pelé, o prefeito e o

governador...Agora voltamos a uma das mais antigas manifestações organizadas de dança popular no Brasil, o samba de roda. Agora os pares se dissolvem e todos formamos uma roda. Aqui temos a mistura mais crua de África e Brasil. Como em toda música de origem africana há percussão, um cantor solista e um coro que responde. São motes de domínio público que segundo a pesquisa do Quinteto Violado, de Pernambuco, já era dançado no Quilombo dos Palmares. Esse samba de roda é freqüente no recôncavo baiano, ou seja, o primeiro ponto de colonização do Brasil. Por isso é mesmo provável que esse ritual tenha 400 anos de idade. Formamos a roda e batemos palmas. Todos estão participando e alguém só, entra na roda. Este único solista vai até o centro da roda rebolando o miudinho. Essa dança é todo um jogo de cintura, ou seja, demonstração sexual. Esse solista convida alguém para entrar no samba de roda através de uma umbigada, que é a metáfora mais direta da penetração, da fertilização. Esta umbigada, ou esta cena de fecundação é comum em outras danças de origem africana. Na rumba cubana, por exemplo, os dançarinos simulam um galo querendo cobrir a galinha. A mulher faz movimentos sensuais com a saia, mas ao mesmo tempo cruza as mãos sobre o sexo pra impedir a penetração, o bailarino homem dança em volta e procura dissimular, tirar a atenção da mulher. E de repente ele estende o braço em direção à vagina da mulher, num movimento que eles chamam de "vacuna", ou seja, vacina, ou seja, penetração. Ela se surpreende e volta a colocar a mão sobre o sexo e o baile prossegue. Após a umbigada do samba de roda o casal vem para o centro da roda e dança sensualmente um para o outro, numa evidente simulação de um ritual de acasalamento. Nessa altura do espetáculo estamos ligados mais diretamente aos tempos mais distantes e às energias mais essenciais que é escancaradamente a reprodução. Estamos reproduzindo um evento folclórico, sem época, sem autores definidos, e não é difícil imaginar o porque que essas danças assim como os ritmos de candomblé, da capoeira e do samba sempre foram discriminados pela sociedade branca ou proibidos pela polícia. Aqui cabe uma reflexão simplérrima: na dança representamos várias coisas que queremos fazer e que não podemos...

SAMBAS DE RODA (FOLCLORE BRASILEIRO)

LEVANTA A SAIA MULATA

NÃO DEIXE A SAIA MOLHAR

QUE A SAIA CUSTOU DINHEIRO

E DINHEIRO CUSTOU GANHAR

19.JUIZO FINAL: SUPERAÇÃO APOTEÓTICA, A ESPERANÇA

Encerramos o espetáculo com um arranjo em forma de samba enredo de desfile de escola de samba para Juízo final, de Nelson Cavaquinho e Elcio Soares. Originalmente essa canção é um samba lento que teve o andamento acelerado em nossa interpretação. Aqui todos se vestem de branco, entramos explicitamente numa ritualização da esperança, da renovação. É de certa forma uma representação literal da letra: o sol há de brilhar mais uma vez/ a luz há de chegar aos corações/ o mal será queimada a semente/ o amor será eterno novamente. O formato de escola de samba é obviamente apoteótico, e chega a ser tratado na mídia com o superlativo de "um dos maiores espetáculos da terra".

JUIZO FINAL (NELSON CAVAQUINHO, ELCIO SOARES)

O SOL....HÁ DE BRILHAR MAIS UMA VEZ

A LUZ....HÁ DE CHEGAR NOS CORAÇÕES

DO MAL....SERÁ QUEIMADA A SEMENTE

O AMOR...SERÁ ETERNO NOVAMENTE

É O JUÍZO FINAL, A HISTÓRIA DO BEM E DO MAL

QUERO TER OLHOS PRA VER, A MALDADE DESAPARECER

NELSON CAVAQUINHO (28/10/1911 - 17/2/1986)

CARIOCA, ADOTOU O APELIDO NELSON CAVAQUINHO DESDE JOVEM, QUANDO TOCAVA O INSTRUMENTO NAS RODAS DE SAMBA PROMOVIDAS PELOS OPERÁRIOS DA FÁBRICA EM QUE TRABALHAVA. COMEÇOU A FAZER ALGUM SUCESSO COMO COMPOSITOR NOS ANOS 40, QUANDO CYRO MONTEIRO GRAVOU ALGUMAS DE SUAS MÚSICAS. EM MEADOS DA DÉCADA DE 50 CONHECEU O PARCEIRO GUILHERME DE BRITO, COM QUEM COMPÔS SAMBAS COMO "A FLOR E O ESPINHO" (COM ALCIDES CAMINHA), "FOLHAS SECAS ". FOI UMA DAS ATRAÇÕES DO BAR ZICARTOLA, MANTIDO POR CARTOLA E A ESPOSA ZICA, ONDE FOI DESCOBERTO, EM MEADOS DOS ANOS

60, PELOS INTELECTUAIS). CONSAGRADO COMO UM DOS MAIORES SAMBISTAS DO BRASIL, FOI GRAVADO POR DIVERSOS CANTORES, DESDE CHICO BUARQUE E PAULINHO DA VIOLA ATÉ ARNALDO ANTUNES.

ATENÇÃO!!: O BIS É O GRAN FINALE! A PÚBLICO SOBE NO PALCO E DANÇA COM O ELENCO!

O bis de o Baile Estelar é, sem dúvida um dos momentos fundamentais do espetáculo. Após o elenco agradecer os aplausos, o público é convidado a subir ao palco e dançar algumas canções. Os artistas não desempenham mais seus personagens: são pessoas comuns, divertindo-se no meio da festa. Essa é a comunhão final, onde a totalidade finalmente toma forma e se expressa. É aí que o objetivo do espetáculo é atingido, quando, após a “viagem arquetípica”, todos vamos nos divertir. É sim, um entretenimento, mas agora ele não é mais ingênuo, já que toda uma complexa trajetória foi cumprida por todos os presentes.

Para finalizar, orquestra escolhe algumas canções. Entre as mais freqüentes estão:

20- PIERROT APAIXONADO (NOEL ROSA E HEITOR DOS PRAZERES)

Temos uma marchinha de carnaval; num musical brasileiro não poderia faltar. As marchinhas de carnaval tem sua história vinculada a própria música gravada, foi um fenômeno que espalhou-se depois da radiodifusão. Os compositores da época trabalhavam em duas vertentes: a música de meio de ano, que era pra ser ouvida e cantada como canção e a marchinha de carnaval, criada para ser consumida exclusivamente nos dias de folia. Musical e poeticamente, em regra, as marchinhas são simples. São uma piada com um refrão para colar no ouvido e pra se cantar bêbado nos bailes de salão. Muitas delas tem um apelo infantil pois as matinês para crianças sempre foram um mercado bom para marchinhas.

Seria quase constrangedor criar um musical brasileiro do período pré bossa nova sem nenhuma canção de Noel rosa, um dos personagem mais genial da cultura brasileira. Trouxemos para o baile estelar a marchinha Pierrô Apaixonado por conter as idiossincrasias que caracterizam o espírito carnavalizador brasileiro. A harmonia em tonalidade, menor e o refrão aparentemente melancólico (o pierrô que chora pelo amor da colombina), escondem na verdade uma letra anárquica e avacalhada. Os famosos personagens da tradicional comédia de l’arte, aqui no Brasil, vivem sim seus dramas de amor triangular, no entanto acabam resolvendo as questões se embebedando de vermut com amendoim.

PIERRÔ APAIXONADO (NOEL ROSA E HEITOR DOS PRAZERES-1935)
UM PIERRÔ APAIXONADO

QUE VIVIA SÓ CANTANDO

POR CAUSA DE UMA COLOMBINA

ACABOU CHORANDO, ACABOU CHORANDO

UM PIERRÔ APAIXONADO

QUE VIVIA SÓ CANTANDO

POR CAUSA DE UMA COLOMBINA

ACABOU CHORANDO, ACABOU CHORANDO

A COLOMBINA ENTROU NO BOTEQUIM

BEBEU, BEBEU, SAIU ASSIM, ASSIM

DIZENDO: PIERROT, CACETE

VOU TOMAR SORVETE

COM O ARLEQUIM

UM GRANDE AMOR, TEM SEMPRE UM TRISTE FIM

COM O PIERRÔ, ACONTECEU ASSIM!

LEVANDO ESSE GRANDE “CHUTE”

FOI TOMAR VERMUTE

COM AMENDOIM

HEITOR DOS PRAZERES (23/9/1898, 4/10/1966)

CAVAQUINISTA, COMPOSITOR, E PINTOR. HEITOR SEGUIU O OFÍCIO DO PAI TORNANDO-SE MARCENEIRO. COM 14 ANOS JÁ ANIMAVA FESTAS TOCANDO EM CONJUNTOS DE CHORO. SUAS PRIMEIRAS COMPOSIÇÕES DATAM DE 1912: O LIMOEIRO, LIMÃO E ADEUS, ÓCULO. PARTICIPOU ATIVAMENTE NA FORMAÇÃO DE ESCOLAS DE SAMBA, TAIS COMO, DEIXA FALAR, DE MIM NINGUÉM SE LEMBRA, PORTELA E MANGUEIRA, TODAS EM 1928.

EM 1931 INGRESSOU NO RÁDIO APRESENTANDO-SE COM UM CORO FEMININO, CONJUNTO INTITULADO HEITOR E SUA GENTE. EM 1937, COMEÇOU A PINTAR COMO AMADOR, USANDO COMO TEMAS O SAMBA, MALANDROS E MULATAS, SE TORNANDO MAIS TARDE UM PINTOR FAMOSO. COM SEU QUADRO MOENDA, PARTICIPOU DA I BIENAL DE ARTE DE SÃO PAULO, VOLTANDO A EXPOR EM 1953 E 1961. CHEGOU A EXPOR SEUS QUADROS INCLUSIVE NO EXTERIOR.

NOEL ROSA (1910 - 1937)

NASCIDO NO RIO DE JANEIRO NOEL ROSA CARREGOU A VIDA TODA AS MARCAS DE UM PARTO DIFÍCIL, FEITO À FÓRCEPS, QUE CAUSOU AFUNDAMENTO E FRATURA DO MAXILAR.. AOS 13 ANOS APRENDEU A TOCAR BANDOLIM E DEPOIS VIOLÃO E DOIS ANOS MAIS TARDE JÁ FAZIA SERENATAS NO BAIRRO. EM 1929 PASSOU A INTEGRAR O CONJUNTO BANDO DOS TANGARÁS, ACOMPANHADO DE JOÃO DE BARRO, ALVINHO, HENRIQUE BRITO E ALMIRANTE E ESCREVEU SUAS PRIMEIRAS COMPOSIÇÕES. TRÊS ANOS MAIS TARDE NOEL ROSA ABANDONOU O CURSO DE MEDICINA QUE ESTAVA FAZENDO E FORMOU COM LAMARTINE BABO, MÁRIO REIS E DEPOIS COM NONÔ, PERI CUNHA E FRANCISCO ALVES O CONJUNTO ASES DO SAMBA. VIVENDO SEMPRE A VIDA BOÊMIA DOS BARES DA LAPA, NOEL ROSA ACABOU FICANDO TUBERCULOSO, DOENÇA QUE ACABOU LEVANDO-O À MORTE COM APENAS 26 ANOS. DEIXOU MAIS DE DUZENTAS COMPOSIÇÕES .

21-VASSOURINHA (COMPOSTA EM 1889 OU 1909, POR MATIAS DA ROCHA E JOANA BATISTA; CLUBE CARNAVALESCO MIXTO VASSOURINHAS).

Nenhum ritmo brasileiro é mais eufórico do que o frevo, e vassourinha é o frevo mais popular do estilo. Está gravado na memória do brasileiro: ao ouvir vassourinha todos saem pulando. O frevo é uma música muito peculiar, uma manifestação urbana da região de Recife e Olinda. As melodias são complexas e exigem virtuosismo dos músicos, principalmente dos sopros. Os passos de dança são acrobáticos e tem um grau de dificuldade de execução e chega a ser proibitivo para quem não é atleta. Segundo a historiografia os movimentos do frevo são uma evolução direta da capoeira. Reservamos Vassourinha para o final do final, pois não conseguimos imaginar nada mais intenso. Depois do frevo, todos vão descansar em casa lembrando do espetáculo e com dores musculares.

MATIAS DA ROCHA
OS DADOS SOBRE A VIDA DE MATIAS DA ROCHA SÃO ESCASSOS. EXISTE UM RETRATO SEU NA SEDE DO CLUBE VASSOURINHAS, EM RECIFE. MATIAS DA ROCHA ERA AFILADO, NEGRO, TRAJADO COM ELEGÂNCIA. FUNDADOR DO CLUBE, ERA MAESTRO E TOCADOR DE VIOLÃO.

JOANA BATISTA
QUANTO A JOANA OS DADOS ENCONTRADOS SOBRE A SUA VIDA SÃO IGUALMENTE ESCASSOS. DE ACORDO COM A CERTIDÃO DE ÓBITO, SABE-SE QUE FALECEU EM 1952 EM SUA CASA NO ZUMBI, COR PARDA, PERNAMBUCANA, DOMÉSTICA.

DEIXOU TRÊS FILHOS E TINHA PAIS IGNORADOS. QUANDO FALECEU TINHA 74 ANOS DE IDADE.

PERGUNTAS E RESPOSTAS ESCLARECEDORAS

Porque o Baile Estelar investe na música das décadas de 30, 40 e 50 do século XX?

Historicamente, essas décadas marcam o início da cultura de massa com o surgimento do cinema, da radiodifusão. Essas mídias foram fundamentais para criar um conceito de identidade nacional coletiva. Diversos países tiveram uma primeira geração de compositores de música popular que são reconhecidos até hoje: nos EUA o jazz de Louis Armstrong e Duke Ellington, em Cuba, Lecuona e Arsênio Rodriguez. No Brasil, tivemos Pixinguinha, Ari Barroso, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga e muitos outros.

Disse o poeta cubano do séc XIX, José Marti, uma frase simples, porém, interessante: "a música é a alma do povo". Bem sabemos que a função social da música é enorme. Desde sempre as tribos em todo planeta reuniam-se para cantar e dançar, isso une o grupo e o diferencia de outras tribos. Isso vale ainda hoje para as tribos urbanas, onde identificamos distinções de comportamento de punk X metaleiros X rapers X cibermanos, etc. Sem dúvida, esses engenhosos compositores supracitados foram diretamente responsáveis por

forjar a alma do brasileiro.

O espetáculo "O baile estelar" investiga a cultura brasileira já em sua expressão urbanizada, de consumo. Faremos algumas digressões sutis pelas raízes folclóricas, mas priorizamos o formato vigente na era da música gravada. Curiosamente para minha surpresa percebi que a origem desses compositores faz um interessantíssimo mapa do Brasil! Pixinguinha nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, mas estava ligado às famílias baianas que batucavam o samba. Luiz Gonzaga era pernambucano, Caymmi baiano, Ari Barroso é filho de Ubá, Minas Gerais. Noel Rosa, um símbolo do Rio de Janeiro, era na verdade mais letrista do que compositor de melodias. O melodista dos grandes clássicos de Noel como Conversa de Botequim, Feitio de Oração é um paulistano do Brás chamado Vadico...Estamos investigando um Brasil profundo.Estaremos jogando luz sobre um processo de síntese dialética. Através desses compositores poderemos passear pela diversidade rítmica (música e dança) e navegar pelo espectro afetivo-emocional que caracteriza a alma brasileira (que não é melhor nem pior que as outras), mas que merece algum interesse. A dor do samba-canção, a euforia física e técnica do frevo, a inteligência de algumas poesias, os personagens que brotam espontaneamente de estilos como samba de breque, a sensualidade dos bailes de casal, os movimentos telúricos dos ijexás.

Porque o mundo todo consome a música feita nas Américas (o samba, o jazz/funk, o mambo/salsa)?

Porque foi nas Américas em que a engenhosidade das melodias e da harmonia da tradição européia mesclou-se com a polirritmia africana, gerando uma música de intensa vitalidade. Também porque nas Américas, surge um homem que não é nem nobre, nem escravo, que traz consigo um novo conceito de otimismo e diversão que se contrapõe ao conservadorismo classista vitoriano do séc XIX e dos exclusivismos hierárquicos das cortes decadentes das famílias reais européias.

Porque Brasil e Cuba possuem em sua música tambores de origem africana, toques e canções diretamente relacionadas aos Orixás e não encontramos nenhuma dessas informações na música norte-americana?

Porque a colonização espanhola e portuguesa foi católica, essencialmente distinta da inglesa, marcadamente protestante/anglicana. O catolicismo foi tolerante com o sincretismo. Temos hoje, por exemplo, no Brasil uma religião afro-cristã, onde o praticante considera-se católico e pratica o candomblé. O protestantismo nesse sentido é muito mais radical e cortou violentamente qualquer possibilidade da cultura africana. No jazz, os músicos negros usam instrumentos das bandas militares e das orquestras de fanfarra brancas, enquanto que por aqui temos todo tipo de percussão africana adaptada (atabaque, cuíca, berimbau, agogô, etc). Um outro aspecto interessante dessa divisão religiosa é que o catolicismo perdoa o analfabetismo e um dos conceitos fundamentais do protestantismo define que todo ser humano tem que saber ler para poder consultar a bíblia. Muitas diferenças se explicam nesses detalhes...

Qual a religião mais antiga do mundo?

É a religião dos Orixás. É comprovado que o ser humano, o Homo sapiens migrou da África para o resto do planeta, e que o panteísmo africano é muitos milhares de anos anterior às outras religiões ocidentais e orientais. O cristianismo tem dois mil anos, o islamismo mil e seiscentos. Agora podemos entender porque o negro norte americano, quando quer retornar às suas origens converte-se ao islamismo; algo que soa estranho a nós, brasileiros que temos a cultura africana exalando em todas as nossas atividades cotidianas. Curiosamente, a religião dos orixás é hoje muito mais presente nas Américas do que na África; pois as missões evangélicas praticamente erradicaram as religiões ancestrais do continente africano.

Como a cultura de massa se estabeleceu nos diferentes países da América Latina?

Tivemos diferentes mídias em diferentes países que criaram um conceito unitarista de nação. No México surgiu o cinema dramalhão popular, no Chile um boom de jornais publicando notícias e novelas, e no Brasil o samba foi pioneiro ao introduzir o batuque negro na "sala de estar" do branco de classe média.

Como era a música brasileira antes do advento dos gramofones, da rádio difusão?

Era muito regionalizada. Cada comunidade, com suas características étnico-religiosas específicas, praticava seus folguedos, suas danças, seus cortejos. Com nossa miscigenação e as dimensões continentais do território tínhamos conseqüentemente uma infinidade de danças e ritmos.

Porque o samba tornou-se a música oficial do Brasil?

Foi no período nacionalista de Getúlio Vargas que se iniciou a radiodifusão. O Rio de Janeiro era a Capital da República, e a primeira rádio de grande alcance foi a Rádio Nacional que tocava obviamente o estilo de samba que era feito no Rio de Janeiro. Já havia o samba de bumbo de São Paulo, oriundo das regiões rurais do Vale do Ribeira, já havia todos os tipos de afoxés e maracatus no nordeste, mas foi o samba carioca que chegou nos diversos cantos do país. Um fenômeno semelhante verificou-se no futebol. Ainda hoje se você viajar para estados do norte e nordeste e verificar que a grande rivalidade de torcidas por lá é entre flamenguistas e vascaínos. Essa é uma herança dos tempos do radio, transmitida por gerações, quando todo o pais ouvia o campeonato carioca. O cidadão comum torce pro time regional, mas quando perguntado sobre o time do coração, a resposta é sempre um time do Rio de Janeiro, mesmo que ele seja nascido e crescido no Acre.

Em que medida a música brasileira é influenciada pela música africana?

A presença da música africana nas nossas diversas manifestações musicais é muito mais forte do que a maioria das pessoas imagina. Muitos gêneros são evoluções da música religiosa dos terreiros. O maracatu, os ijexás são exemplos. O próprio samba como o conhecemos, sempre existiu nos terreiros com o nome de cabila, o samba de caboclo. Na cabila, a batida é um tanto mais irregular, mais polirrítmica, assim como a dança que tem requebros imprevisíveis. Ao migrar para a vida urbana esses ritmos são simplificados. O samba enredo é uma mistura que tem alguns ingredientes desse samba antigo, mas que para tornar-se um ritmo constante é preenchido de maneira inclemente por surdos que fazem a batida constante para que se possa, por exemplo, desfilar numa avenida.

O que identifica a música africana?

Instrumentos de percussão, a estrutura pergunta/resposta, e coro versus solista que responde ao coro. Esta dinâmica nos remete à dialética "mundo versus indivíduo". (esse assunto merece uma reflexão à parte).

Quais são as etnias africanas presentes na cultura brasileira?

Grosso modo, o Banto oriundo do congo angolês e o Ioruba proveniente de culturas sudanesas. É possível identificar distinções nas canções do terreiro. O que é Banto é tocado com as mãos sobre os tambores e no Ioruba os tambores são tocados com varetas. O Brasil

é o país que teve maiores imigrações de escravos negros na história da civilização, durante aproximadamente quatrocentos anos chegaram à costa brasileira alguns milhões de escravos (Ver O Tratado dos Viventes de Luis Felipe de Alencastro).

Porque uma orquestra com sopros e não um regional?

Porque o séc XX é o séc do jazz. Estamos tratando também, o tempo todo, da relação da identidade brasileira formando-se concomitantemente com o surgimento da potência militar econômica cultural norte-americana. Pixinguinha era taxado de músico de jazz, assim como Ari Barroso. E as orquestras de gafieira nada mais são do que uma adaptação brasileira das orquestras de Benny Goodman e Duke Ellington. Não havia ainda bailes de música mecânica e a orquestra com sopros era a maneira mais poderosa de preencher o salão e o coração dos bailarinos.

A música desse período é ostensivamente americanizada?

Em parte. Estamos tratando de um fenômeno dinâmico que reflete esse processo histórico. Nos anos 20 e 30, a classe media era ainda incipiente, e a geografia das cidades, particularmente o Rio de Janeiro, ajudava a misturar classes sociais. Um bom exemplo é a obra do burguês Noel Rosa, toda compartilhada com os vizinhos oriundos dos diferentes extratos sociais. A musica brasileira liga-se mais intensamente com a norte americana apos a II Guerra Mundial, quando os EUA impõem-se militar e economicamente de maneira

categórica, expandindo seus tentáculos onde outrora imperavam os valores da Europa arruinada por bombardeios. Brincaremos com essa metamorfose, exploraremos o belo e o ridículo do personagem esdrúxulo de Carmem Miranda, cheia de bananas de plástico na cabeça. O cenário rendeu-se ao imperialismo explicitamente nas décadas posteriores, quando a explosão imobiliária gerou o labirinto de Copacabana e a especulação obrigou o negro pobre a invadir o morro para viver nas favelas. E os brancos de classe media criaram para si a bossa nova, um estilo fantástico que reflete o apartheid social dos anos 50 e 60.

Onde tudo aconteceu?

No Rio de Janeiro, então capital política, econômica e cultural do Brasil. Os personagens têm origens diversas, mas tudo aconteceu no Rio. Nosso espetáculo deve saber disso, mas tratará a musica brasileira como fenômeno cosmopolita, não perderemos tempo com mistificações regionalistas.

O que faz a música desse período especialmente interessante para nós?

A música possui alguns elementos estruturais. De uma maneira simplista identificamos melodia, harmonia e ritmo. A música africana é extremamente complexa ritmicamente. A música tonal européia, que assume a vocação de canção popular desde o período elisabetano séc XVI na Inglaterra, passa por toda uma trajetória para atingir um estágio sofisticado intimamente ligado ao cidadão comum urbano. A música dos anos 20, 30 e 40, tanto no Brasil quanto em todo mundo possui um limite de engenhosidade em que se combinam harmonias que se encadeiam com movimentos surpreendentes e melodias que surfam na crista dessas ondas. Assim são os standards americanos da Broadway (Cole Porter, Gershwin) e as canções de Ari Barroso. Numa simplificação psicológica grosseira, podemos dizer que desenhos de melodias provocam sensações subjetivistas relacionadas ao romântico, à trajetória de emoções individuais. Uma melodia nos conduz por um caminho afetivo; Chopin foi o grande especialista nessa técnica. O que temos hoje, no séc XXI é uma outra relação diferente: se nos anos 20 e 30 a ênfase era a relação harmonia/melodia, hoje temos a supervalorização do ritmo e da letra (rap), e do ruído como música (samplers freqüentes na música eletrônica).

Em que grau temos liberdade para transformar e adaptar ritmos?

Um ritmo, um jeito de tocar um instrumento é o resultado de longo processo de depuração, de encontros, circunstâncias e acidentes históricos. Normalmente uma comunidade específica que trás em si suas raízes diversas começa a fazer música, e muitas pessoas de gerações diversas colaboram, cada um com sua maneira de interpretar sua apreensão de mundo, até que todas essas informações tendem a cristalizar-se formando uma linguagem sintética, que carrega, naquele momento, a convicção e a história desse grupo social. É, portanto, cheio de significados, e se ao transformarmos esse ritmo original, tivermos alguma consciência de seus elementos definidores que lhe garantem vitalidade e sobrevivência às mudanças do tempo, estaremos contribuindo para a evolução dessas informações. Às vezes, simplesmente pegar uma canção e interpretá-la num outro ritmo pode ser apenas algo meio bobo...

Lançaremos mão de muitas licenças poéticas e musicais?

Sim. Uma delas é usar ritmos regionais diferentes do samba, pois ate 1946, quando Luis Gonzaga surgiu com força avassaladora, não havia fusão premeditada de gêneros; tudo era samba e ponto final. Estilizaremos tudo, porém mantendo a responsabilidade do rigor da consciência e da pesquisa histórica para criar uma rica diversidade interna.

É possível separar a música que iremos trabalhar de sua expressão na dança?

Na música erudita, de concerto, isso é freqüente: Stravinsky, Bartok e tantos outros compositores do séc XIX e XX basearam suas composições em temas folclóricos, e transcreveram esse conteúdo para partituras e obtiveram ótimos resultados. Orquestras de todo mundo abrem suas partituras e os percussionistas, tocam com a coluna ereta as caixas, os bumbos, os pratos. Na nossa pesquisa tudo é diferente. Estamos interessados em enveredar no esclarecimento do movimento do Brasil, inúmeros exemplos são muito simples de apontar: no candomblé, o tambor rum interage com quem dança e alguém que não dance simplesmente nunca vai tocar o rum... as alfaias do maracatu são impossíveis de se tocar se o corpo do músico não acentuar as batidas fortes. Pensemos na capoeira...

Esse período foi maravilhoso?

Não! Tudo que nosso espetáculo não deve querer é algo do tipo "os bons tempos estão de volta". Nesses tempos a Europa se auto-destruía com a primeira e segunda guerra, havia genocídio, armas químicas. No Brasil, 70% da população era analfabeta, negros e mulheres eram discriminados, o país era dominado pela ditadura corrupta e feroz de Getúlio Vargas. Penso que nossos dias são muito melhores. Por isso, insistimos para que as pessoas envolvidas no trabalho estejam dispostas a uma experiência de aprendizado e experimentação, caso contrário tudo perde a razão de ser. Devemos nos propor a recorrer a procedimentos de vanguarda, tanto na música quanto na dança e na encenação.

Esse é um trabalho nacionalista?

Não, o nacionalismo é abjeto, manipulável. Justifica monstruosidades como ditaduras, fascismo e nazismo. É sim, um trabalho de cidadania e identidade como conseqüência de um fenômeno: nos debruçaremos sobre a música brasileira porque é boa, não porque é brasileira. Procuraremos a essência de um movimento de corpo brasileiro porque é lindo. Porque é estelar.


 

 

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