MONSTROS PELUDOS

Editora  Nova Fronteira 1999

O livro Monstros Peludos é um romance escrito para o público infantil a partir da premiada peça homônima de Guga Stroeter.

 

CAPÍTULO II :

A noite do dia seguinte estava iluminada por uma gigantesca lua cheia, não havia sequer uma nuvem no céu. Apenas uma agradável brisa movimentava suavemente as folhas das árvores, enquanto reinava o silêncio nos aposentos do castelo. A corte toda aproveitou a boa temperatura para dormir bastante, pois estavam todos muito cansados por causa da festa da noite anterior que, animadíssima, atravessou toda a madrugada. Todos  no castelo dormiam tranqüilamente, a não ser a linda Princesa Veridiana que rolava na cama, inquieta. Já passava da meia-noite, ela olhava o teto do seu quarto e pensava: 

           -Amanhã a esta hora estarei casada pelo resto da minha vida com o Livreiro Ptolomeu. O Livreiro... tão bonzinho... tão inteligente... mas o mundo é tão grande! E eu, aqui do castelo, sempre vi o mundo de longe. Sempre tão distantes os bosques e as aldeias! Sempre vi de longe o povo e os animais. E sempre tive medo da noite.

            Veridiana sentou-se na cama, passou a mão nos seus longos cabelos ruivos e pensou:

           -Vida de Princesa não é fácil. É até fácil ser Princesa, só não é tão gostoso como todos pensam. Uma Princesa não pode andar descalça, uma Princesa não pode brincar na rua, uma Princesa não pode sair do castelo! Eu nunca soube se as pessoas gostam de mim como eu sou ou apenas se aproximam de mim porque sou uma Princesa.

            Então Veridiana levantou-se e vestiu sua camisola mais simples,  colocou sobre a cabeça um lenço branco de algodão e disse para si mesma:

            - Vou aproveitar minha última oportunidade para conhecer a aldeia, para sentir de perto como vive esse povo que um dia governarei. Mas é melhor que eu cubra a cabeça, que eu vá disfarçada, para que ninguém me reconheça. Só assim poderei misturar-me aos plebeus.

            Sorrateiramente, Veridiana caminhou pelos corredores do palácio e saiu pela porta dos fundos, atravessou os jardins, misturou-se a alguns servos para passar pelo portão da muralha que separava o castelo dos campos. Como era noite de lua cheia a trilha no meio do bosque estava clara, facilitando sua caminhada colina abaixo. Ela já andava a  aproximadamente vinte minutos quando começou a ouvir ao longe sons de tambores , ao mesmo tempo que avistava as luzes dos casebres. Ao aproximar-se viu que no centro da aldeia dos lavradores estava ocorrendo uma grande festa popular onde aldeões de todas as idades, homens e mulheres tocavam tambores de todos os tamanhos e cantavam alegremente. Veridiana cuidou mais uma vez de cobrir o rosto com o lenço, dirigiu-se a um velho camponês grande e forte chamado Pai Julião que assistia a festa.

            - Que festa é essa, meu senhor?

           

            O homem tinha um olhar firme e tranqüilo e respondeu com sua voz grave:

 

            - A senhora não é daqui, de onde vens?

 

            - Eu venho de um lindo reino onde o mar esmeralda reflete em suas ondas uma gigantesca lua de marfim. Eu venho de um lindo reino onde o sol nasce a cada manhã como um rubi gigantesco, despertando os pássaros e esse povo que vem às ruas e praias brincando e cantando de alegria e felicidade.

 

           O velho camponês ouviu com atenção e respondeu:

            - Então a senhora deve ter vindo de muito longe, porque aqui o Rei não permite que nós cantemos nossa própria música. Somos todos tristes. E como são os campos do seu reino?

           

            Veridiana sensibilizou-se com o que ouviu mas não deixou transparecer nenhuma reação. Com a certeza de não ser reconhecida por estar disfarçada ela prosseguiu o diálogo:

            - Da minha varanda vejo um lago repleto de inquietos peixes  prateados, os trigais são como oceanos de ouro. A brisa da tarde tem o aroma dos pessegueiros e da minha janela eu ouço o ruído das enormes maçãs vermelhas caindo sobre a verde e úmida relva. Ploft ploft ploft!

             Pai Julião coçou a barba grisalha e acrescentou meditativo:

            - Oh! Prezada senhora! Em nosso modesto reino tudo é muito diferente. Somos todos muito pobres. Tudo o que produzimos é com muito sacrifício. Todos acordamos de madrugada para arar essa terra cheia de areia e pedras, e com pouquíssimos caramujos. E na época da colheita, veja só que injustiça; somos obrigados a dar metade da produção para o Rei. E assim ele e a turma dele vão vivendo de festa em festa, enquanto nós trabalhadores passamos necessidade. É triste admitir que muitas vezes não temos comida em casa e minha esposa é obrigada a fazer uma sopa, um caldo ralinho com alguma sobra da semana.

 

            Veridiana empalideceu, essas informações eram novidade para ela, mas ela prosseguiu:

            - E essa linda festa, meu bom homem? Qual o motivo de tanta dança, de tanta música?

            Pai Julião estampou um sorriso no rosto e começou a explicar:

            - A senhora veio à nossa aldeia num dia muito especial. Essa festa acontece todo ano, nessa noite de lua cheia. Como eu estava dizendo, aqui na terra dos aldeões, o chão é seco, cheio de areia e pedras. Aqui quase não chove e toda a água que rega as plantas vem dessa bica, dessa nossa fonte mágica.

 

           

            Os dois aproximaram-se de uma pequena fonte seca construída com a sobreposição de grandes pedras negras de onde saia  uma canaleta de um palmo de largura.

 

            - E acredite se quiser, madame. Esta fonte é mágica, só fornece a água quando alguém canta uma música bonita para ela. Quando uma alma pura canta uma canção que vem do fundo do coração, os espíritos da água e da terra ficam contentes e a água então cai da fonte e nós podemos matar a sede e principalmente regar as plantações.

 

              O camponês franziu a testa transparecendo preocupação e comentou:

            - Esse ano  a coisa vai de mal a pior! O cantor até que começou bem, depois começou a beber pinga e a desafinar. Nas últimas cinco luas cheias ele cantou mal, a fonte secou e estamos todos passando fome. Mas hoje, se os espíritos da fonte gostarem de algum cantor, a situação poderá melhorar. Basta ele emocionar a todos e a água jorrará. A partir daí, é só ele cantar um pouquinho, a cada lua cheia, que não faltará água o ano todo e os campos serão verdejantes novamente.Mas se os espíritos não se encantarem essa noite... isso seria uma catástrofe! Só daqui a um ano teremos outra chance. Nesse caso, morreremos todos de fome e de sede; seremos obrigados a sair daqui e habitar outro reino.         

 

            Veridiana não conseguia mais esconder a emoção. Ela estava percebendo que o mundo não era nada parecido com o que ensinaram a ela dentro dos salões luxuosos do Palácio. Ela fechou ainda mais o lenço que cobria o seu rosto e chorou algumas lágrimas silenciosas pensando:

           -Eu sempre imaginei que meu pai tinha um coração de ouro! Ele sempre me parecia pronto a se sacrificar, a morrer se preciso fosse, para manter a honra do povo do seu reino, eu acreditava que todos lhe beijavam os sapatos por admiração, mas não é nada disso! Eu fui enganada a vida toda! Agora vejo, o Cínico é quem tem razão... mundo falso! Mundo hipócrita! Eu não sirvo para nada! Eu tenho vergonha de mim! Eu não mereço nada que tenho!

            Sem perceber o sofrimento de Veridiana, Pai Julião caminhou até a bica e gritou bem alto:

            - Atenção, a festa vai começar!

           

            Os tambores cessaram e todo o povo que estava por ali concentrou-se silenciosamente em torno da fonte. Pai Julião chamou o primeiro candidato. O nome dele era Dioniso, ele vestia uma calça justa e empunhava um violão cheio de fitas coloridas. Dioniso começou a rebolar freneticamente e tocou no seu instrumento um ritmo que parecia samba de roda e então começou a rebolar mais ainda e a cantar uns versos:

            - E tira a roupa balançando a bundinha

              E vem ralar na boca da biquinha

              E tira a roupa balançando a bundinha

              E vem ralar na boca da biquinha

 

            A multidão ficou apreensiva esperando que a água jorrasse da canaleta, no entanto não veio água nenhuma. Muito pelo contrário, surgiu uma fumaça esbranquiçada, mal cheirosa como enxofre, e todos começaram a tossir e a lacrimejar. Com certeza o espírito da fonte não se comoveu positivamente com a dançinha de Dioniso.

            Momentos depois a fumaça acabou e Pai Julião convocou o segundo candidato da noite. Seu nome era Gregório, ele tinha os cabelos arrepiados e vestia uma roupa de couro preto cheia de tarraxas de metal prateado. Gregório aproximou-se da bica, fez cara de mal e começou a  bater os pés violentamente no chão e a cantar berrando.

           

 

            - Bica Nojenta!

              Bica fedorenta!

              Tem cheiro de sovaco!

              Solta logo essa água imunda

              E não me encha mais o saco!

 

            O resultado foi uma nuvem de enxofre ainda mais fedida. O povo saiu correndo em todas as direções e só voltou quando a fumaça desapareceu por completo. Estavam todos muito preocupados, até que Salvador, filho de Pai Julião, aproximou-se da fonte com seu acordeon. Enquanto caminhava, todos notaram que ele olhava fixamente para Veridiana. Salvador  era um rapaz lindo, forte, musculoso, com uma cabeleira ondulada e um rosto de galã de novela. Transbordava autoconfiança, e disse otimista:

            - Não te decepcionarei, papai. Nem a você, linda e misteriosa donzela com a cabeça coberta com um lenço branco.

           

            Salvador pigarreou, e começou a dedilhar sua velha sanfona cantando muito afinado:

           

            - Fonte de todos os desejos

              Fonte da água abençoada

              Convido para chorar comigo

              A lágrima da minha balada     

 

             Chore nossa pobreza

             Nossos amores e incertezas

             E o teu pranto regará

             Todos os campos e as mesas

 

             Ouça o meu canto humilde

             Que lhe implora compreensão e acolhida

             Alimente nossas crianças

             Nos brinde com a água da vida

 

            Imediatamente jorrou da fonte uma água fresca e cristalina. A água brotava com uma força surpreendente, inundando o pequeno reservatório da fonte A multidão pulava de alegria, as mulheres correram para casa para buscar os baldes e abastecer seus tanques. A euforia era geral, alguns jovens carregavam Salvador nos ombros em triunfo, com arcodeon e tudo. E lá do alto ele continuava perseguindo Veridiana com os olhos e ela, por sua vez já deixara a tristeza de lado e comemorava a enxurrada da fonte com um sorriso irresistível. Veridiana aproximo-se de Salvador e perguntou:

            - Que bela canção, meu rapaz! Onde você foi buscar palavras tão bonitas?

 

            Os amigos de Salvador colocaram-no novamente no chão. Ele entregou o acordeon a um companheiro e respondeu a Veridiana:

            - Não deveria ousar te contar, mas bem, eu sei que é uma ousadia... acredite se quiser - quando vi seus olhos negros e misteriosos como a noite sem estrelas e os lábios vermelhos como as cerejas do oriente; meu coração disparou... eu nem ia cantar essa noite. Que os espíritos das águas me perdoem, cantei só para te impressionar. Felizmente a água brotou e você é a responsável por isso.

             Veridiana embaraçada com os elogios baixou os olhos e disse:

            - Mas, cavalheiro, você mal me conhece!

        Naquele momento nada abalaria a confiança de Salvador que respondeu categoricamente:

            -Discordo! Toda vez que duas pessoas se olham de verdade passam a se conhecer para todo o sempre. Levamos o resto da vida para trilhar o caminho que aquele primeiro olhar nos demonstrou.

 

            Veridiana estava fascinada e continuou:

            - Explique melhor, gracioso trovador!

 

             Inspirado, Salvador falava versos que soavam como poesia.

            - Impossível. As coisas importantes da vida não se explicam. As verdades não se explicam. Quando temos que explicar alguma coisa é porque alguém tem dúvidas a respeito.

 

             É desnecessário provar a verdade de minhas palavras,pois o que  sinto é a única verdade desse mundo.

              Veridiana sorriu e perguntou:

            - E o que é esta coisa afinal de contas, que você tanto sente?

 

            Pela primeira vez na noite o rosto de Salvador demonstrava uma mistura sutil de afeto e malícia. Salvador perguntou:

            - E o que eu ganho pra te revelar esse meu segredo?

 

            E Veridiana respondeu:

            - Um beijo.

 

            Na frente de todos, Veridiana e Salvador abraçaram-se e seus lábios se tocaram. Nesse instante, todo o povo calou-se. E mais uma vez ouviu-se a voz firme de Pai Julião, agora transparecendo felicidade:

            - Parabéns, belo casal! Assim é o amor, aparece quando menos se espera. E quando acontece assim, numa noite de lua cheia é coisa muito séria.  

 

            Ainda abraçada a Salvador, Veridiana olhou para os céus e pensou em voz alta:

            - Eu nunca imaginei que poderia sentir um dia uma sensação dessas! Meu Deus! Como eu vivi até hoje sem conhecer o amor! Eu amo o amor!

 

            Então encostou a cabeça no peito de Salvador e desabafou:

            - Eu te amo, amor! E quero vocês, o amor e o meu amor todos os dias da minha vida.

 

            Pai Julião intrometeu-se:

            - Menina, o que você está dizendo é muito sério!

 

           

 

            Veridiana, embriagada de amor olhou fundo nos olhos de Salvador e disparou:

            - Você casa comigo?

 

            A multidão, testemunha de todo o romance murmurou surpresa. Salvador logo respondeu:

            - Meu coração é todo seu, mas quero a aprovação dos espíritos, dos elementos!

 

            Então entrou no tanque da fonte, e com a água até os joelhos começou a cantar com sua voz doce e afinada:

            - Oh fonte da água e dos sonhos

              Do seio da terra oriundo

              Abençoa a união de um campônio

              Com a moça mais bela do mundo 

 

            Salvador estendeu os braços e então Veridiana entrou na fonte e o abraçou com toda força. Beijaram-se, e a água brotou com mais força ainda cobrindo-os como uma cachoeira. As mulheres, comovidas suspiravam de emoção. Pai Julião aproximou-se do casal, que não parecia ter a menor intenção de interromper o longo beijo, e decretou:

            - O desejo é do céu e da terra

              O cupido os flechou

              Como humilde prefeito da aldeia

              Vos declaro marido e mulher

           

            - Parabéns, meu filho!

           

            O povo explodiu de alegria, a música voltou forte, e todos cantavam e dançavam. E sob o sorriso da cândida lua de prata, sob a água incessante e pura, o casal beijava-se, ignorando a tudo e a todos.

 

 

 

 

CAPÍTULO III:

 

            Salvador e Veridiana deixaram a festa e caminharam de mãos dadas pelas ruas de chão batido da aldeia até chegar ao casebre de Salvador. O barraco ficava no pé de um morro desmatado, e todo o terreno era usado como depósito de carroças velhas, de potes de cerâmica quebrados, de rodas de moinhos desmontados. Morava ali também um vira-lata mau educado, que latia ameaçando toda gente. Era tão clara a luz do luar que o casal não precisava de velas ou lamparinas para caminhar, nem mesmo para abrir a porta da casa. Salvador empurrou a porta com o pé e entrou com Veridiana nos braços.

            - Enfim sós!

 

            E ela repetiu:

            - Enfim sós!

 Foi então que Veridiana pela primeira vez entrou numa casa de camponês. A casa era de pau-a-pique e seu ambiente não possuía divisões, tinha apenas um único cômodo onde cabiam uma estreita cama de palha aparente e um caixote de madeira, que provavelmente cumpria as funções de armarinho, criado mudo, dispensa e banquinho. Na parede dois pregos grandes serviam como cabides e atrás da porta ficava uma enxada e uma picareta, instrumentos de trabalho de Salvador. Havia uma janela na parede oposta à porta, que dava para um matagal. Salvador colocou Veridiana sentada no banquinho, então divertiram-se trocando juras de amor.

            - Eu te amo!

 

            - Eu te amo mais do que você me ama!

 

            - Impossível!

 

            - Então eu quero alguma prova do seu amor, querido.

 

       Nunca se viu um casal tão apaixonado! Mas prestem atenção, pois o diálogo entre Salvador e Veridiana foi assumindo caminhos inesperados...

 

            - Bem, minha deusa, se você quiser, eu saio amanhã com meu canivete e em todas as árvores do mundo gravarei um coração dizendo - Eu te amo...eu te amo... eu te amo...meu amor! Eu só esqueci de um pequeno detalhe, para eu poder registrar o meu carinho por você, eu preciso de uma pequena ajuda.Para eu poder escrever nas árvores, eu preciso que você me revele esse pequeno detalhe: o seu nome.

 

             Incrível! Vejam só! Eles já eram marido e mulher e ainda não sabiam o nome um do outro!

 

            - Meu nome é Veridiana. E então meu marido, aproveitando essa oportunidade rara, esse momento de intimidade, sem querer abusar da sua paciência, você também poderia me dizer o seu nome?

              

            - Salvador a seu dispor! Nascido, criado, apenas para te dar amor, vinte e quatro horas por dia, o resto de minha vida!

 

         Agora que já estavam apresentados, poderiam conversar mais intimidades. Mas Salvador nem desconfiava que na verdade Veridiana era a princesa...Veridiana interrompeu o diálogo romântico para espantar duas moscas que teimavam  em voar ao redor de sua cabeça úmida. Mal sabia ela que nesse momento um pernilongo abusado picava-lhe a testa... Salvador mudou um pouco o tom de voz e disse:

            - Pois é meu bem, você surgiu na minha vida num momento muito importante. De fato você pode me ajudar. Minha vida tem sido muito difícil. Acordo as quatro da manhã para cuidar da casa; as cinco estou saindo com a enxada nas costas. As seis estou quebrando pedras para arar a terra. Minha vida édura mas é boa. Adoro a vida. Passei a gostar mais ainda da minha vida quando percebi que ela não é fácil pra ninguém... cada um tem que procurar encontrar a felicidade dentro da própria vida, seja ela quebrando pedra ou comendo caviar. Agora tudo complicou-se um pouco mais: quase não posso mais dormir, porque além de quebrar pedras, devo passar boa parte da noite tocando e cantando na beira da fonte d’água. Menos tempo pra mim, menos tempo pra nós, menos tempo para eu cuidar da casa. Agora que estamos juntos, você pode cuidar um pouco da casa e assim eu vou trabalhar com mais afinco ainda, porque vou querer te oferecer tudo do bom e do melhor. Cada pedra que eu quebrar terá um significado: meu coração estará se abrindo mais uma vez pra você; cada pedra estará gritando: Salvador ama Veridiana!!! Salvador ama Veridiana!!!

 

            E Salvador acariciou o rosto de Veridiana com seus dedos calejados pela enxada.Ela deitou a cabeça nos ombros do marido e disse:

 

            - E eu amo Salvador!!! Mas Salvador querido, você terá que gastar um pouco da sua paciência comigo. Eu preciso confessar que não sei cozinhar!!! Eu não sei lavar. Não sei lavar o chão, não sei lavar os pratos...

 

              Salvador sorriu e respondeu:

            - Eu cozinho pra você .Eu lavo tudo. Vai ser um prazer limpar a colher que encostou na sua boca vermelha, vai ser um prazer lavar a roupa que encostou no seu corpo branco. E eu ainda vou poder sentir o seu cheiro nas roupas. E vou limpar o chão para que cada taco deste chão lhe acaricie os pés delicados. E um dia, esse chão será branco como algodão das nuvens para que você, minha musa, flutue como um anjo. Meu anjo, meu anjo lindo!

 

            Veridiana estava visivelmente emocionada, e ela disse com a voz trêmula:

            - Eu posso ajudar e muito. Eu não sei cozinhar mais sei sânscrito e aramaico.

 

 

            Salvador franziu a testa com espanto.

            - E que diabos é isso?

 

            - O sânscrito é a língua da Índia Antiga, o aramaico, a língua dos Arameus.

 

            - E para que servem essas línguas?

 

            - Eu também não sei muito bem pra que servem. E eu também não sei direito essas línguas, na verdade só fui na primeira aula. Meu professor, o Livreiro me disse que eu não levava muito jeito pra coisa. Salvador meu amor, na verdade eu acho que não posso te ajudar em absolutamente nada.

 

            Salvador não perdeu a esportiva e exclamou mais firme do que nunca:

 

            - Não tem problema nenhum. Basta você Não se importar de levar uma vida simples ao meu lado. Eu tenho certeza que as coisas vão se ajeitar, tudo vai melhorar. Eu sonho um dia em poder trocar a palha do meu colchão. Tenho certeza que Julieta nos ajudará.

 

            Veridiana ficou enciumada.

            - Quem é essa tal de Julieta?

 

            Salvador apontou para a janela e disse:

            - É ela.

 

            Veridiana assustou-se a ponto de soltar um gritinho agudo: pelo vão da janela entrava no aposento a enorme cabeça de uma égua pampa que mascava tranqüilamente algum resto de capim.

           

            - Essa é a égua Julieta. já conversei com meu vizinho cocheiro e ele vai me dar uns restos da alfafa da égua Julieta, nossa cama vai ficar nova em folha.

 

            Salvador tirou do banquinho um trapo amassado e amarelado.

 

            - E o meu cobertor é só esse aqui, todo rasgado, coitado! Mas não tem problema, nos vamos dormir juntos, abraçados, vamos nos esquentar nas noites frias de inverno. Espero também que você não repare nos furos do teto, já me acostumei, agora até gosto da idéia de poder ver seu lindo corpo iluminado pela lua de prata, todas as estrelas do universo vão disputar esses pequenos orifícios.

 

            Veridiana olhou para o alto e verificou que no teto havia um buraco maior até que a janela. Não se sabe se os astros disputariam mesmo o privilégio de aproximar-se do casal por aquele vão, mas, decerto, era bastante útil aos insetos, pois o pernilongo que mordeu a testa de Veridiana estava indo embora pra casa por ali, gordo e satisfeito.

 

           

 

           

            Salvador prosseguiu:

            - Todos os astros do céu vão querer se acercar de você meu bem, e eu vou ter o maior prazer de dividir contigo o meu repolho.

           

            Um calafrio percorreu todo o corpo de Veridiana. Por um instante, Veridiana parecia abrir e fechar os olhos para verificar se tudo aquilo que ela estava ouvindo não era apenas um pesadelo de mau gosto. Havia pânico na voz da Princesa.

 

            - Repolho???

 

            Salvador respondeu tranqüilamente:

            - Estou vendo que meu amor não é mesmo deste reino.  Eu me orgulho de ser um típico e autêntico aldeão de meu reino e me alimento como qualquer um de nós. Pela manhã, um belo prato de repolho cozido. No almoço, uma salada de repolho fresquinho, seguida de uma torta de repolho, de noitinha, uma sopinha de repolho para dormir de barriga quente.

 

            O coração de Veridiana disparou, sua respiração adquiriu um ritmo irregular. Tentou acalmar-se levando as mãos à cabeça, mas levantou-se de um sobressalto. Queria respirar ar puro para colocar as idéias no lugar. Deu um passo até a janela, mas quando foi debruçar-se no parapeito, quase deu uma cabeçada com a égua Julieta, que continuava por ali como se a conversa fosse com ela. Tudo piorou quando Veridiana percebeu que Julieta estava mascando repolho. A Princesa pensou:  E agora, meu Deus? eu odeio repolho!

 

            Então, respirou fundo e começou a falar num tom frio e objetivo:

 

            - Meu amor, meu primeiro e único amor, é necessário que nós dialoguemos. Apesar de todo o carinho que nos une, talvez tenhamos sido apressados demais no nosso casamento. Não estou discutindo nossos sentimentos. Estou tratando objetivamente da realidade: somos pessoas muito diferentes. Estou questionando se de fato seremos felizes juntos! Comecei a temer por nós. Esse nosso amor louco talvez nos leve a uma catástrofe. Meu amor, eu não sei lavar, não sei cozinhar, não sei limpar, não sei cuidar das plantas nem dos animais. No entanto sou clara e corajosa para me defrontar e dizer verdade. A verdade é que não pretendo aprender a lavar, não tenho a intenção e não vou perder meu tempo fazendo faxina. E o que é pior, detesto repolho, repolho me dá gases. Repolho fresco, repolho roxo,  qualquer repolho, eu odeio, sou incapaz de comer e conviver com um povo que se alimenta exclusivamente de repolho. Salvador, meu amor, não me queira mal, eu te amo, mas nós erramos, eu errei! Sejamos realistas, nosso casamento foi um engano. Vamos assumir essa condição imediatamente, vamos cada um de nós cuidar da nossa própria vida.

 

            Salvador ruborizou, sua expressão era de surpresa e incredulidade.

            - Como assim, Veridiana?

 

            - Acabou. Essa brincadeira de casamento acabou. Ë preciso que você saiba, tive uma educação aristocrática, fui criada para me casar dentro da nobreza.

 

            - Como assim Veridiana?

 

            - Chega de brincar. É preciso que você saiba quem eu sou: eu sou a Princesa Veridiana, a filha do Rei, fui criada na corte e pra lá estou voltando imediatamente.

 

            As pernas de Salvador tremiam, ele mal conseguia ficar de pé. Encostou-se desolado na parede e implorou:

            - Não faça isso meu amor! Onde foi que eu errei?

 

            Veridiana foi inclemente, abriu a porta e disse já do lado de fora da casa:

            - Você não errou. Eu é que quis me iludir. Minha vida no palácio era um tédio, mas é lá que eu pertenço. Não me queira mal, meu amor por você é verdadeiro, mas esse casamento é impossível. Boa sorte na sua vida. você é uma pessoa maravilhosa e vai superar isso. Adeus...

 

            Ela virou-se e caminhou noite adentro, sem olhar para trás. Salvador caiu de bruços sobre a sua pequena cama e começou a chorar, uivando como um lobo ferido ou um cão abandonado.

            Seu martírio despertou a atenção de vizinhos e amigos e daí a poucos minutos, a  casa de Salvador estava cercada de aldeões; todos curiosos e apreensivos com aquela cena impar, pois Salvador não era homem de sofrer à toa, muito menos de chorar em público. O primeiro a entrar na casa foi seu pai, Pai Julião que foi logo perguntando:

            - Qual o problema, Salvador?

 

            Entre soluços, ainda deitado e sem tirar as mão do rosto, Salvador respondeu:

            - Ela me abandonou, meu pai! Minha esposa me abandonou na noite de núpcias! Isso é horrível. Ela era a Princesa disfarçada.

 

            - É mesmo horrível como um caramujo atropelado.

 

            - Ela me abandonou porque eu sou pobre e ela é rica.

 

            Pai Julião  tentou consolá-lo.

            - E o pior é que ela só é rica porque você e eu somos pobres.

 

            - Me sinto mal, Pai Julião! Me sinto péssimo! Minha vida acabou!

 

            Pai Julião acariciou a cabeça de seu filho e disse:

            - Nada disso, Salvador! A vida tem dessas coisas e todos nós passamos momentos difíceis. Temos sim é que aprender a  tirar os ensinamentos de cada situação.

 

            Salvador sentou-se na cama, com os pés sobre o colchão. Enfiou a cabeça entre os joelhos e dizia como que para si mesmo:

            - Esse é um dia triste, terrível, lamentável! Nunca esquecerei o dia de hoje, em que na noite de núpcias fui abandonado por minha esposa, pela mulher que amei, que amo, que amarei sempre, sempre!

 

            Salvador estava dominado por sentimentos de rancor e culpa. Um ódio contido começou a surgir em sua fala:

            - O que fiz de errado, oh céus? Por que mereço esse castigo? Os deuses e os anjos estão zombando de mim! Eles me odeiam! O amor é injusto! Minha vida não tem mais sentido! Sou pobre, sou pobre sim! Mas sou digno! Vivo do meu trabalho e quero o bem de todos que me cercam. Por que está catástrofe aconteceu justo comigo? Será que foi porque entreguei meu coração sem receios a uma mulher? Será que amar de verdade é pecado?

 

            Salvador voltou a chorar e a soluçar como uma criança. Em volta da casa, na porta e na janela amontoavam-se camponeses que a tudo assistiam sensibilizados e em silêncio. Pai Julião prosseguiu consolando o filho:

            - Calma Salvador! Nem tudo está perdido! E as dificuldades acontecem para que nossas vidas se transformem, para melhor! Com o apoio dos que te amam, você vai superar esse momento triste. Além disso, as coisas não são como nos parecem ser num primeiro momento. Por exemplo: um caramujo adormecido e um rocambole de espinafre vistos de perfil, parecem a mesma coisa, mas não são!

 

            Salvador  interrompeu o choro e perguntou:

            - O que você está querendo dizer? Não consigo acompanhar o seu raciocínio.

 

            - É de fato minha comparação não tem pé nem cabeça, mas agora, pense comigo, vê se você me acompanha... na minha opinião você deveria manter o casamento.

 

             Salvador estava ao mesmo tempo humilhado e indignado.

            - Como assim? Ela me abandonou! Minha amada não me quer!

 

            - Mas eu casei vocês dois debaixo da fonte nessa noite de lua cheia. Todos aqui são testemunhas.

 

            - Isso pouco importa. Não existe casamento sem amor.

 

            - Você não está captando, Salvador. Estou falando de uma outra coisa. Estou afirmando que você já está casado, e que o ridículo Rei Ricardo será obrigado a reconhecer esse casamento. E tem mais! Nem que a Princesa queira, agora ela não pode mais casar com aquele Livreiro idiota! Agora você entende onde eu quero chegar?

 

            - Não!

 

            Pai Julião agora tinha um ar meditativo e político.

            - É o seguinte, filho querido: a partir de agora você tem um dever patriótico para com esse nosso pequeno e pobre reino.

 

            - Como assim, pai?

 

            - Eu entendo a sua dor, imagino como está sendo difícil pra você, no entanto...

 

 

            - No entanto o que? Desembucha logo!

 

            - Você já é Príncipe! Você é o primeiro Príncipe que veio do povo na história do nosso reino! Isso é incrível, fantástico, sensacional como um caramujo!

 

            - Mas meu casamento já acabou! Quer dizer, nem começou de verdade. mas com certeza não existe mais...

 

            - Nada disso! Nada disso! Você é um predestinado, é um herói, você é o nosso Salvador!

 

            Um sorriso sutil surgiu nos cantos dos lábios de Salvador.

 

            - Isso eu sei que sou desde pequenino.

 

            Pai Julião viu brotar uma ponta de orgulho em seu filho, e aproveitou para acordá-lo:

            - Então eu quero mais ânimo, mais felicidade! Você vai exigir seus direitos como Príncipe que é e vai morar na corte. De lá, com todo o seu poder de nobre você ajudará a nós, os pobres lavradores! Você é o único capaz de melhorar um pouco essa nossa vida miserável.

 

            O povo em volta da casa ouvia tudo, e muitos perceberam que Pai Julião falava sério e que sua idéia era boa. Salvador já não mais chorava, agora refletia e reclamava para seu pai e para todos em seu redor:

            - Mas ela não gosta de mim!

 

            - Eu sei, meu filho. Vai ser difícil. Vai ser muito difícil! Mas compreenda, é um sacrifício necessário para ajudar esse nosso povo trabalhador e sofrido.

 

            - Eu não quero morar na corte! Eu gosto dos meus vizinhos, gosto do meu casebre de teto furado, eu gosto de repolho; eu tenho orgulho de ser um simples aldeão.

 

            Foi então que alguns camponeses sem se identificarem interferiram na conversa. Um deles berrou lá do fundo:

            - Faça isso por nós, Salvador!

 

            Um outro completou:

            - Você é a nossa única esperança!

 

        

 

           Pai Julião aproveitou o calor dessas      emoções, pegou firme nos ombros de seu filho, colocou olhos nos olhos e sentenciou:

            - Você sempre foi o nosso Príncipe, sempre foi o Príncipe da aldeia. Chegou a hora de você se tornar o Príncipe de todo o reino! Príncipe dos pobres, o Príncipe dos ricos, o Príncipe das crianças, o Príncipe dos velhos! O Príncipe dos nossos lindos cavalos, o Príncipe dos sorridentes caramujos, o Príncipe das nossas gordas vacas, o Príncipe de nossas meigas ovelhas e dos gansos rabugentos também! O primeiro e único Príncipe legítimo da história desse reino!

           

            O povo, excitado, passou a gritar em coro:

            -  Viva o Príncipe Salvador! Viva! Viva!

 

            Pai Julião emendou:

            - E então, meu filho?

 

            Salvador caminhava em círculos dentro de seu cômodo minúsculo e divagava:

            - De que me vale ser o Príncipe do céu e da terra, dos ventos e dos mares? De que me vale ser o soberano absoluto dos planetas gelados e das estrelas vermelhas, de que me valeria o poder sobre todo o universo e o espaço suspenso se tenho meu coração partido? Um homem dilacerado não é homem, não é Príncipe nem senhor de si próprio, é o mais infeliz dos seres.

 

            - Não seja tão pessimista filho, todos nós nessa aldeia, nesse reino, nesse mundo também sofremos por amor e nem por isso deixamos de ser homens. E nem por isso nos tornamos Príncipes. Entre nós os céus escolheram você como nosso único Príncipe. Viva o Príncipe Salvador!

 

            O povo estava contagiado pelo clamor político patriótico. O coro de vivas crescia em intensidade. Dois camponeses não resistiram e entraram casa a dentro. Um deles pequenino, sujo e com um rastelo na mão foi logo perguntando:

            - E então Salvador?

 

            Um outro magro, alto e curvo carregando um saco com sementes completou:

            - Só você pode nos livrar da fome!

 

            Salvador levantou os dois braços e gritou:

            - Um momento senhores, um momento. Eu e minha consciência precisamos discutir por alguns instantes.

 

            Repentinamente instalou-se um silêncio sepulcral. Até a égua Julieta parou de mastigar. Salvador saiu de sua introspecção dizendo:

            - Como são loucos os deuses do destino, a quem pertence a minha vida? Devo obedecer as minhas dores aos meus amores? Não... não, certamente a minha vida não é minha.

 

           

           

            Salvador continuou a meditar e o silêncio voltou a ser absoluto. Até os pardais e corvos            calaram-se. Derrepente Salvador ergueu a cabeça e seu olhar vago fitava o horizonte inexistente. Deu um passo à sua direita e com um movimento rápido pegou sua enxada que estava guardada atrás da porta, ergueu a lâmina que passou pelo vão do teto e proferiu veemente:

            - A partir deste momento meu nome é Príncipe Salvador!

 

            O povo gritava:

            - Viva! Viva! Ele aceitou tornar-se Príncipe!

 

            Os camponeses entraram na casa abraçaram Salvador e depois levaram-no para o terreno. Salvador foi colocado sobre os ombros de Emanuel, o homem mais forte da aldeia. Todos berravam e levantavam suas foices, suas picaretas, suas pás. Alguém gritou:

            - Vamos todos, nós e o Príncipe até o castelo.

 

            Um outro completou:

            - Quero ver a cara do Rei quando ele souber que a filha dele casou-se com um quebrador de pedras!

 

            E assim com Salvador carregado em triunfo, brandindo suas ferramentas de trabalho, conclamando de casa em casa todos os lavradores e cantando músicas populares, todos os trabalhadores seguiram em marcha em direção ao castelo de Rei Ricardo. Como vocês podem ver, muitas coisas diferentes estava acontecendo no Reino das Crisálidas.

 

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