CANTORAS NEURÓTICAS

Por Guga Stroeter

A cantora Tutti Baê e sua colega Mônica Marsola escreveram um livro didático sobre técnica vocal. Tutti solicitou a Guga Stroeter que escrevesse o prefácio.

A presente publicação trata de expressão, canto e música. Bem sabemos que o ser humano expressa-se das mais distintas maneiras. Como também são distintas as definições do que é a música. Para Rilke, a música é o hálito das estátuas; para Schopenhauer, a música é pura vontade. Já o poeta e herói nacional cubano José Marti proclamou que a música é a alma do povo. Talvez essas visões não sejam antagônicas, mas complementares, e somadas contribuam nesse nosso delicioso debate filosófico. Outras colocações sequer suscitam polêmica, pois são verdades unânimes. Uma delas é o incontestável fato de que o ser humano em qualquer época, em qualquer cultura, gosta de música. A outra verdade fundamental é que todo cantor é antes de mais nada um neurótico. Eu afirmo isso de forma muito serena, pois na minha condição profissional de músico instrumentista, participo da guerra eterna entre músicos e cantores. Estamos cercados de apocalípticos por todos os lados, pessoas que anunciam por todos os meios a chegada eminente do juízo final. Nesse dia, num grande julgamento universal, num gigantesco Nuremberg cósmico, Deus resolverá definitivamente as querelas entre cães e gatos, entre corinthianos e palmeirenses e entre cantores e instrumentistas. Nós, os instrumentistas, chamamos os cantores de canários e relaxamos no palco escudados pelos nossos instrumentos. Sim, entre nós e a platéia existe um intermediário. Já o cantor tem o seu próprio corpo como emissor daquilo que é considerado o ponto dramático focal da apresentação. Melhor dizendo, toda a expectativa e toda crítica estão amarradas ao frágil gogó do canário. É principalmente por intermédio do cantor que os indivíduos do público se identificam dentro do processo dialético do fenômeno musical. Ora o espectador imagina a si próprio sobre o palco, pois tem a fantasia narcísica de ser o centro da afetividade daquela circunstância; em outro momento esse mesmo espectador adota como sua a poesia da letra cantada, e então a voz do cantor e do espectador unificam-se no imaginário. Por isso o erro do cantor ofende as emoções profundas da platéia. Não é à toa que os cantores tornam-se famosos e paranóicos e tem uma relação agonística com sua obra; enquanto nós, músicos hedonistas, rastejamos pelos cantos ruminando a frustração de nosso anonimato, contando ótimas piadas e maldizendo a mídia manipuladora e burra. Certa vez fazendo um show com um grupo de músicos amigos, convidamos uma cantora para subir ao palco e cantar conosco. Ela prostrou-se maravilhosa em frente ao microfone e então nós tocamos a introdução da canção. No entanto todos nós erramos, cada músico foi para um lado, erramos a harmonia e o ritmo estava indefinido. A platéia nem notou e lá estava a cantora, vítima de nossa incompetência, com um pé na canoa e outro na casca de banana, com a atenção da platéia convergendo para ela. Foram momentos num inferno onde ela sem dúvida pensou furiosa: "Músicos filhos da puta, vocês querem me derrubar!". Então ela cerrou os olhos e arriscou sair cantando na mais árida solidão e nós, claudicando, fomos encontrando o caminho das pedras e lá pelo meio da canção conseguimos nos acertar. Acabou a música e fomos aplaudidos de maneira convencional. Nós sorrimos, agradecemos e envergonhados no íntimo, fomos ao boteco beber e dar risada. Enquanto isso a cantora trancava-se no camarim e enfiava a cabeça debaixo da torneira arrependida de ter saído de casa.

Meu pensamento, como o leitor já deve ter percebido, é carregado de uma fúria classificatoria que vem embasada numa experiência sempre confirmada nesses anos de carreira. Até o dia em que conheci Tutti Baê, numa turnê em que realizamos concertos em catorze cidades de Portugal. Trabalhei com ela, convivi com ela e pensava: temos aqui uma pintassilga aparentemente impecável no quesito sanidade mental. Tudo ia bem até o dia que em Lisboa entramos num taxi e o motorista, um senhor sisudo de cabelos brancos, perguntou nosso destino. E Tutti disse: "Moço, leve-nos ao castelinho". Essa frase bombástica desencadeou no motorista uma fúria bárbara. Ele retrucou vociferando: "Eu não sou moço, tenho mais de sessenta anos, e o que a senhora chama de castelinho é o castelo de São Jorge, a maior e a principal construção histórica de Portugal!". Pensei comigo que chamar o castelo de São Jorge de castelinho é o mesmo absurdo que confundir o Cristo Redentor com a boneca Barbie. A ocorrência desse deslize no entanto, humanizou a Tutti e foi construtiva para a evolução da nossa relação, pois passei a vê-la como um ser humano intrigante, como uma artista de grande talento, uma das mais dignas representantes da nova música popular brasileira. Tutti é uma cantora muito completa, pois além de cantar investe na sua formação estudando harmonia, leitura musical, lecionando técnica vocal e agora publicando este livro.

Essa publicação pode significar um atalho no percurso padrão da saúde vocal de muitos artistas. No Brasil, em regra, a profissionalização na área musical é precoce, e o indivíduo com alguma vocação e pouco treino, cai logo na vida, cantando em casas noturnas, shows, bailes, grupos de rock and roll, etc. Por despreparo ou por falta de condições técnicas ideais (amplificação deficiente, ambiente esfumaçado) esse profissional rapidamente arrebenta a própria voz. Então é obrigado a procurar um fonoaudiólogo que não tem a mínima obrigação de ensinar música, pois dedica-se a reverter a patologia. Só nesse instante é que o cantor entende a necessidade de estudar canto, não para aprender a cantar, mas para aprender a não se machucar trabalhando. E só depois de começar as aulas, percebe a importância de estudar música. E estudando música muitas vezes o profissional aprende a ouvir música, e a audição criteriosa amplia os horizontes da percepção da importância da música na cultura e ilumina os caminhos do direcionamento artístico, questão essa fundamental na revitalização da música contemporânea.

O livro "Canto, uma expressão" de Mônica Marsola e Tutti Baê, é fruto da experiência de duas cantoras que encaram a música de uma maneira ampla e responsável construindo uma ligação direta entre a fisiologia, o canto, passando pela profilaxia, consciência corporal e mergulhando por fim no objeto final do artista que é a expressão

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